Psicologia,

O caso Britney S

Memórias da cantora retratam o jeito do nosso tempo de flertar com a loucura e reagir em vez de elaborar

01fev2024 • 14maio2024 | Edição #78

Desde os dezoito anos, quando lançou um dos álbuns mais vendidos de todos os tempos por uma artista solo adolescente, Baby One More Time, em 1999, Britney Spears viu sua vida se tornar pública. Agora, a montanha-russa dos últimos 25 anos chega ao público sob outra perspectiva — a de Britney. Inevitável pensar no custo do estrelato e nas possibilidades de um objeto de desejo aspirado pelas massas ser um sujeito livre. A mulher em mim traz fragmentos de uma das histórias mais impressionantes que a cultura hipermidiática produziu no século 21, e também relatos de uma mulher solitária, tanto no topo como no fundo do poço. Parece especialmente sádico que os roteiristas da vida tenham escolhido que alguns dos maiores hits de Britney Spears sejam sobre submissão e toxicidade.


A mulher em mim, de Britney Spears, é um lembrete de como não fazemos ideia de quem ela é e muito menos do seu sofrimento

De maneira geral, as 280 páginas de memórias de Britney narram a trágica trajetória de alguém que já ocupou o lugar de “maior estrela do planeta”, título digno desta época em que somos movidos a doses cavalares de narcisismo. Os 49 capítulos descrevem uma série de experiências de extremo desamparo. E também fazem pensar no jeito do nosso tempo de flertar com a loucura. Nesse sentido, o livro também pode ser lido como uma espécie de tratado emblemático do contemporâneo, um estudo clínico que faz refletir sobre os processos de subjetivação — e adoecimento — nos anos 2020. Temos em mãos “O caso Britney S”.

Ao longo da vida, Freud publicou cinco grandes histórias que se tornaram os casos paradigmáticos da clínica psicanalítica, tanto pelos sucessos como pelos impasses. As histórias analisadas por Freud funcionam como casos que nos permitem ler outros casos. Como os grandes casos freudianos, o caso Britney é complexo em sua singularidade.

Durante treze anos, sob a rigorosa tutela do pai, Jamie Spears, Britney não podia ver seus dois filhos sem autorização, nem escolher as próprias refeições; estava proibida de conduzir um carro, beber café ou retirar o DIU. O trecho em que o pai lhe informa da tomada de controle legal da vida profissional e pessoal da filha, dizendo “agora eu sou Britney Spears”, escancara o desconforto. Ao longo dos relatos, fica evidente como ela aprendeu muito cedo que não era dona do próprio corpo. Mas é mais impressionante como, na maturidade, passou a ser tratada como se não fosse dona de mais nada, muito menos de si. Em resumo, presa a céu aberto.

O que torna o caso ainda mais excruciante é como nós, a audiência, estamos implicados. Tratar A mulher em mim como um caso analítico é obviamente uma brincadeira, um exercício um pouco absurdo de psicanálise selvagem. Afinal, nunca estive nem perto de um enquadramento no qual Britney e eu formássemos uma dupla analítica. Ao mesmo tempo, a cantora é uma dessas figuras públicas tão expostas, e sobre quem supomos saber tanto, que temos a impressão de que a conhecemos. Nesse sentido, o livro é um lembrete de como não fazemos ideia de quem ela é e muito menos do seu sofrimento. Sofrimento esse que foi amplamente catalisado pela máquina de escândalos que nos manteve vidrados, crentes de que a conhecíamos tão bem. Para Britney, tão doloroso quanto ser isolada era não se sentir vista, mesmo sendo tão exposta.

Garota ruim

Ao longo dos anos, a cultura de massa se acostumou à ideia de que Britney Spears era uma garota ruim. Não uma “garota má”, ao melhor estilo bad bitch que deixa a internet tão eufórica, ruim no sentido de ser uma mulher de má índole e com um desempenho sempre aquém do esperado. Britney foi retratada como uma mãe ruim, uma cantora ruim, uma performer ruim e, claro, o clássico: uma mulher ruim, daquelas que cometem o pecado de não estar sempre impecáveis e muito menos conseguir conquistar e manter o casamento dos sonhos.

Talvez uma das maiores tragédias da vida de Britney Spears seja, desde muito cedo, ter se tornado um avatar da nossa angústia cultural sobre o corpo feminino, a juventude compulsória, a produtização da identidade, a espetacularização da intimidade, a naturalização da misoginia. Como dizia Contardo Calligaris, o Ocidente foi construído em cima do ódio à mulher, sobretudo ao corpo feminino.

Não me parece acaso que o livro tenha vendido mais de 2 milhões de cópias só nos Estados Unidos; na era do show do eu, a queda geralmente é um grande espetáculo. Espetáculo esse que o livro descreve de forma acessível, por vezes até crua demais. Seu brilho é exatamente nos entregar o que acontecia atrás da coxia, quando as luzes se apagavam. Mas ainda que A mulher em mim seja a história de um ego se desintegrando na nossa frente, impressiona como essa avalanche psíquica virou um show tão grande e desgovernado.

Uma tragédia de Britney Spears foi ser um avatar da nossa angústia cultural sobre o corpo feminino

Rompendo o código de ética do analista, fui pesquisar como alguns eventos narrados foram noticiados pela grande mídia à época — episódios de forte tormento psíquico para a autora foram reportados como “colapso”, “degradação” e “pedidos de socorro”. É um tanto perturbador ler manchetes sobre como os atos de Britney eram tentativas de “chamar a atenção” do grande público, no sentido de capitalizar em cima da tragédia, como golpes de relações públicas, puro marketing pessoal. Mas podemos pensar nos tantos atos que esse sujeito descreve como “desesperados” no sentido de atuações, termo tão caro para a psicanálise.

Um ato pode ser lido como algo entre uma ação e uma fala, algo que o sujeito faz “sem pensar” na tentativa de convocar o outro à cena. Ou até uma medida desesperada de se separar do outro, uma ação tão brutal que pode acabar por separar alguém da própria vida, uma passagem ao ato. Seguindo nessa direção, talvez inconscientemente, Britney passou quase duas décadas convocando nossa alteridade, e não apenas nossa audiência. O verso de uma de suas canções mais conhecidas, “sou uma escrava para você”, vem à mente.

Ler os relatos da artista é a difícil experiência de tomar conhecimento dos pontos de dor de quem estava no centro desse picadeiro. Mas como as pacientes que pediram para Freud se calar, pois queriam falar livremente, Britney nos faz escutar muita coisa. No balanço final, “O caso Britney S” tem muito a dizer sobre a relação do contemporâneo com o caótico mar de conteúdo e manchetes que nos incentiva a reagir em vez de elaborar. Um jogo altamente alienante e terrivelmente irresistível.

Vida roubada

A principal história do livro é que esse é finalmente o jeito de Britney de recuperar sua história e sua voz. Mas ler as memórias da Miss Sonho Norte-americano é se dar conta de que, qualquer que seja essa história, ela lhe foi roubada há muito tempo. Seria irônico, se não fosse trágico, que uma cantora cuja voz chegou a tanta gente tenha perdido a própria voz. Como ela mesma diz: “A minha voz
havia sido usada contra mim tantas vezes que eu tinha medo de que ninguém fosse reconhecê-la agora que eu falava livremente”. Depois de alguns anos do fim da curatela, a batalha judicial de treze anos sobre o controle da vida, carreira e finanças da artista, uma pergunta permanece: pode Britney ser realmente livre?

A mulher em mim não é a história de uma garota interrompida, e sim de uma mulher em destroços. É um livro sobre alguém que teve a autonomia roubada, de quem passou tempo demais habitando uma versão regredida de si. É interessante a quantidade de vezes que a autora usa a palavra “estranho”, mas no sentido de um estranhamento forçado, que foi se tornando radical demais, insustentável. Faz pensar no estrago psíquico que estratégias dissociativas podem causar, nos estados de loucura que uma pessoa é capaz de tolerar para não “quebrar”. Algo que ela descreve como um adormecimento de treze anos. Mas é precisamente na estranheza que ela encontra algum tipo de libertação: “Acho que o que estou dizendo é que o mistério do meu verdadeiro eu é uma vantagem para mim — porque ninguém conhece!”.

‘A mulher em mim’ não é a história de uma garota interrompida, e sim de uma mulher em destroços

Uma das lições mais belas que Freud nos deixou é como carregamos um estranho dentro de nós, algo de incômodo e inusual que está sempre à espreita. Ou até à mostra. O livro tenta dar conta desse processo, um dos mais intrigantes da existência: o desconhecimento de si. No fim das contas, é difícil abrir mão das certezas da identidade para bancar as águas turvas e traiçoeiras do desejo. Nesse sentido, “O caso Britney S” parece oferecer uma boa estratégia para navegar o empuxo ao desempenho e aos ideais saturados que transborda em nossos dias: escolher o estranhamento em vez da perfeição.

Uma constante no livro é como Britney sempre dançou no fio da navalha entre princesa do pop e rainha do escândalo — polos que retroalimentaram uma série de comebacks no pop. Entretanto, no meio do que parece uma cartilha acidental para alcançar a megaescala, também vêm à superfície alguns dos pontos de dor mais profundos da autora. São desabafos furiosos que dão notícias dos desabamentos psíquicos (re)vividos por ela. E também relatos de um otimismo insistente de quem busca uma nova vida a partir das ruínas. Britney faz lembrar que os escombros sempre nos oferecem a chance de construir uma nova vida, sem romantizar a dor. A liberdade começa quando nos damos conta de que somos todos marcados pelo traumático, mas não precisamos ser definidos pelos nossos traumas. 

Quem escreveu esse texto

André Alves

Psicanalista, pesquisador e escritor, é coautor de Vibes em análise: psicanálise para escutar as vibrações da cultura contemporânea (Companhia Editora Nacional, 2023).

Matéria publicada na edição impressa #78 em dezembro de 2023.