

Literatura, Trechos,
O vulcão lisérgico de Mónica Ojeda
Em Xamãs elétricos na festa do sol, a escritora equatoriana narra a busca por identidade em meio a uma paisagem mística e lisérgica nos Andes
26maio2025 • Atualizado em: 27maio2025A sinergia e os acenos ao terror que já predominavam em Mandíbula (2022), o primeiro romance da equatoriana Mónica Ojeda publicado no Brasil, continuam como linguagem da autora em sua segunda incursão pela forma longa lançada no país, Xamãs elétricos na festa do sol. A obra chega ao Brasil pela Autêntica Contemporânea em tradução de Silvia Massimini Felix.
Na proa da nova literatura latino-americana e uma das principais representantes do gênero que ficou conhecido como gótico andino, Ojeda se debruça em seu novo livro sobre a história da busca de uma jovem por suas raízes. No romance, Noa convence a melhor amiga, Nicole, a ir ao Ruído Solar, um festival de música que ocorre por oito dias aos pés de um dos vulcões dos Andes com um céu repleto de meteoritos.

Essa atmosfera eletrizante, musical e alucinógena da paisagem andina — cenário que coexiste com a violência urbana e as narcogangues — motiva a protagonista a buscar o pai que a abandonou quando menina. Por trás desse desaparecimento da figura paterna, há o mistério daqueles que subiram ao Ruído Solar e nunca mais voltaram.
Trecho de ‘Xamãs elétricos’
Era estranho nos movermos juntos em direção ao que não se podia mirar, mas de vez em quando a névoa se afastava e víamos o quente: um colosso, um altar de magma brilhando em meio à hora azul. Dizem que diante do grande nos sentimos irremediavelmente pequenos, mas eu me senti imensa, guardando o tamanho do vulcão em meus olhos. Pensei: isso cabe em mim. E, sob nossos pés, a pastagem foi se desnudando para dar lugar a um deserto negro com flores de chuquiragas.
Às vezes, eu me lembro daquela tarde e fico com medo. Medo de como somos um minuto antes de que uma experiência nos transforme. Vimos chagras montando cavalos colorados e um dos chilenos me contou a história da Siguanaba, um espectro em forma de mulher que atrai os homens para um barranco para lhes mostrar a cara de cavalo que ela tem, enlouquecê-los e fazê-los rolar pelo despenhadeiro. Então Noa me agarrou pelos cabelos e explicou que “pesadelo” em inglês era “nightmare”, e que “nightmare” tinha em seu interior a palavra “égua”.
“Mare” é égua, disse, mas também é o que eles chamam de espírito maligno que sufoca as pessoas enquanto elas dormem.
Mais Lidas
Há coisas de que não se esquecem. Quando tenho pesadelos, ouço cascos e relinchos. Levamos uma hora para encontrar as instalações do Ruído Solar: um semicírculo de mais de cem barracas e um cenário modesto onde o sol se punha. Eu já havia me acostumado ao frio, ao cansaço e à sensação de irrealidade que o assobio do vento me fazia no ouvido. Há ventos que podem te matar, dizia Noa: wayra huañuy, wayra puca, wayra sorochi, wayra ritu. Era a primeira vez que víamos tanta gente junta. A terra nos embalava, e a agitação do acampamento fez os guanacos fugirem para longe.
Quando chegamos, nossas mochilas foram revistadas.
Não se permitem armas nem projéteis, disse um menino com um crachá de identificação. Respondi que sabia atirar: minha mãe me ensinou, lhe disse. Noa também havia sido ensinada por sua mãe, pois na costa os homens eram assassinados mas as mulheres primeiro eram estupradas e só depois nos matavam. Nos bairros já não havia ninguém maior de idade que não soubesse se defender, embora isso não nos servisse de nada. Os criminosos comuns diziam pertencer a narcogangues para que ficássemos assustadas e os deixássemos ir: vivam Los Lobos!, gritavam, vivam Los Choneros! Vivam Los Tiguerones, porra! Noa me contou que, quando ainda estava na barriga de
sua mãe, um suposto membro dos Tiguerones entrou em sua casa e seu pai bateu tanto nele que fez seus dentes saltarem da boca. O cara fugiu, mas alguns dias depois encontraram uma poça de sangue na calçada, cinco dentes e uma cabeça de cachorro. Eles vão nos matar, disse a mãe de Noa, e o parto adiantou um mês. Segundo Noa, essa foi a razão pela qual sua mãe começou a vê-la como um produto avariado, uma filha podre desde o ventre.
Pelo menos ela não bate em você, eu disse.
Dá na mesma, o que importa é que ela quer fazer isso.
Entramos no acampamento com os chilenos, mas logo os perdemos em estradas de areia seca e brilhante. As tendas do festival formavam quadras com suas próprias esquinas e cruzes sinalizadas, e as pessoas tinham começado a se instalar e montar suas barracas. Vimos dançarinos segurando tochas e aros de fogo, instrumentos musicais que soavam como mamutes e lamúrias do mangue, relógios astronômicos, corpos nus pintados como a abóbada celeste, rostos tatuados, cabeças com chifres e chakanas entalhadas em meteoritos.
Isso é tempo congelado, disse-nos uma mulher que os esculpia, um tempo tão antigo e estrangeiro como Deus.
Na cordilheira, os caçadores de rochas espaciais levavam as pedras mais valiosas para vender. O restante era recolhido pelos moradores da região e tratado como pedras divinas. Fragmentos de asteroides e de cometas pendiam do pescoço de xamãs, peças sem nenhum valor para os que comercializam meteoritos de grande porte, mas espirituais para quem celebra a festa do sol. Eram pedras escuras e pequenas, ora porosas, ora compactas, usadas em rituais ou para artesanato. Muitos as compravam como curiosidade, outros porque acreditavam que ter um pouco de céu os tornaria mais andinos, verdadeiros filhos do Inti e da Mama Killa. Havia roqueiros e ruidistas usando-as sobre camisetas do King Crimson ou de Sal y Mileto, gringos com ponchos caros que buscavam a experiência ancestral e que os carregavam sob o sol, colecionadores que regateavam meteoritos que talvez nem fossem meteoritos.
No festival havia gente que tatuava com ossos e madeira. Que adivinhava o futuro com folhas de coca ou nas entranhas de pequenos animais. Que pintava cega, dançava cega e tocava instrumentos cega. Músicos que mesclavam gêneros impensáveis para criar electropasillos, rumbablues, mambojazz, bachatapop e capishcafunk e que imitavam vozes de animais. Médiuns, bodyhackers, fotógrafos de aura, ventríloquos e gravadores de psicofonia.
Porque você leu Literatura | Trechos
Longe de casa
Horas azuis, romance de estreia de Bruna Dantas Lobato, reflete sobre laços e solidão sob o olhar de uma jovem que decide construir a vida em outro país
MAIO, 2025