
Literatura, Trechos,
Inesquecível ‘Mrs Dalloway’
Em comemoração ao centenário do clássico de Virginia Woolf, uma nova edição chega às livrarias em junho; leia trecho
30abr2025Há cem anos, a escritora britânica Virginia Woolf publicava Mrs Dalloway, que viria a ser um de seus livros mais conhecidos. Em janeiro de 2025, o romance ganhou uma nova edição comemorativa pela editora Autêntica e, em junho, mais uma será publicada pela Nós, em tradução de Ana Carolina Mesquita, para celebrar o centenário do clássico.
Protagonista do romance, Clarissa Dalloway é uma socialite inglesa casada com um membro do parlamento britânico no pós-Primeira Guerra Mundial. Na trama, a personagem dá uma festa onde se encontram pessoas do seu passado e do seu presente.
Capa da edição de maio da Quatro Cinco Um, Virginia Woolf ambienta Mrs Dalloway na cidade de Londres dos anos 20 do século passado e retrata a alta sociedade britânica da época. Ao narrar um dia na vida da protagonista, a autora detalha minuciosamente a burguesia inglesa e também revela seu amor pelas ruas londrinas.
Trecho de ‘Mrs Dalloway’
Mrs. Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores.
Pois Lucy já tinha muito o que fazer. As portas seriam retiradas pelas dobradiças; o pessoal da Rumpelmayer’s chegaria a qualquer hora. Depois, pensou Clarissa Dalloway, que manhã! – fresca como se dada de presente para crianças na praia.
Que farra! Que mergulho! Pois sempre se sentira assim quando, com um leve ranger das dobradiças, que podia ouvir mesmo agora, ela escancarava as portas envidraçadas e mergulhava no ar livre em Bourton. Como era fresco, calmo, mais parado do que este, claro, o ar de manhã cedo; como o quebrar de uma onda; o beijo de uma onda; frio e cortante, e no entanto (para uma garota de dezoito anos, como ela era naquela época) solene; com a sensação, que teve de pé diante da porta aberta, de que algo terrível estava prestes a ocorrer; olhando as flores, a névoa que se desprendia das árvores aos novelos, as gralhas que alçavam voo e desciam; ali parada, olhando, até que Peter Walsh disse: “Filosofando entre os legumes?” – foi isso mesmo? – “Prefiro homens a couve-flores” – foi isso mesmo? Ele deve ter dito aquilo no café da manhã, certo dia em que ela saiu para o terraço – Peter Walsh. Qualquer dia desses chegaria da Índia, em junho ou julho, não lembrava qual, pois as cartas dele eram chatíssimas; eram as tiradas dele que marcavam; seus olhos, seu canivete, seu sorriso, sua rabugice, e, embora milhares de coisas desaparecessem completamente – como era estranho! – ficavam umas tiradas como aquela, sobre repolhos.
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Enrijeceu um pouco o corpo no meio-fio, esperando o furgão da Durtnall passar. Que mulher encantadora, pensou Scrope Purvis (conhecendo-a como se conhecem os vizinhos de porta em Westminster); havia um quê de pássaro nela, de gaio verde-azulado, leve, vivaz, embora ela já tivesse passado dos cinquenta e se tornado bastante pálida depois da doença. Ali ela se empoleirou, sem jamais vê-lo, à espera para atravessar a rua, bastante empertigada.
Pois, depois de morar em Westminster – há quantos anos, já? mais de vinte –, dava para sentir até mesmo no meio do trânsito, ou ao acordar à noite, disso Clarissa tinha certeza, um silêncio singular, uma solenidade; uma pausa indescritível; um suspense (mas podia ser apenas seu coração, afetado, assim disseram, pela gripe espanhola) antes das batidas do Big Ben. Pronto! Ressoaram. Primeiro uma advertência, musical; depois a hora, irrevogável. Os círculos de chumbo se dissolveram no ar. Que tolos somos, pensou ela, atravessando a Victoria Street. Pois só Deus sabe por que a amamos tanto assim, como a enxergamos assim, inventando, construindo do zero, derrubando, criando de novo a cada instante; mas mesmo as mulheres mais desmazeladas, as mais rejeitadas das miseráveis sentadas aos degraus (destruídas pela bebida) também fazem o mesmo; não é algo que se possa resolver, disso ela tinha certeza, com leis do Parlamento, justamente por esse motivo: amam a vida. Nos olhos das pessoas, no balanço de seus passos, sua marcha e caminhada; no estrondo e no estardalhaço; nas carruagens, automóveis, ônibus, furgões; nos homens-sanduíches que arrastam os pés e balançam o corpo; nas bandas de metais; nos realejos; no triunfo e no tinido e no estranho canto agudo de um aeroplano céu acima, estava o que ela amava; a vida; Londres; este momento de junho.
Pois era meados de junho. A guerra tinha terminado; exceto para alguém como Mrs. Foxcroft na embaixada, na noite anterior, com o coração cheio de desespero porque aquele bom rapaz fora morto e agora o velho solar acabaria sendo passado a um primo; ou Lady Brexborough, que inaugurou um bazar beneficente, disseram, com o telegrama nas mãos; John, seu preferido, morto; mas tinha terminado; graças aos céus – terminado. Era junho. O rei e a rainha estavam no palácio. E por toda parte, apesar de ainda tão cedo, havia uma pulsação, um alvoroço de pôneis a galope, batidas de tacos de críquete; Lord’s, Ascot, Ranelagh e todos os demais; envolvidos na trama suave do ar azul acinzentado da manhã que, à medida que o dia se desgastasse, os acalentaria, e posicionaria em seus gramados e turfes os pôneis saltitantes que, mal tocavam as patas dianteiras no chão, lá se iam de novo pelos ares, os rapazes rodopiantes e as garotas risonhas em musselina translúcida que, mesmo agora, depois de terem dançado a noite inteira, levavam seus cães absurdamente felpudos para passear; e mesmo agora, a essa hora, velhas viúvas discretas disparavam em seus automóveis rumo a tarefas misteriosas; e os lojistas ajeitavam nas vitrines bijuterias e diamantes, adoráveis broches verde-mar arranjados em cenários do século dezoito para tentar os americanos (mas é preciso economizar, em vez de sair comprando coisas sem pensar para Elizabeth), e também ela, que amava tudo aquilo com uma paixão absurda e fiel, que fazia parte daquilo, pois sua família fora gente da Corte há tempos atrás, na era georgiana, também ela iria naquela mesma noite resplandecer e iluminar; daria a sua festa.
Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.
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