O autor Stefano Volp (Victor Vieira/Divulgação)

Literatura brasileira, Trechos,

Controvérsias do luto

Novo romance de Stefano Volp, Santo de casa questiona as masculinidades negras a partir da morte de um pai de família

10fev2025

A morte repentina de um patriarca, devorado por uma onça, faz toda a sua família questionar o sentimento de luto. O caráter trágico do falecimento de Zé Maria simboliza toda a violência que envolve a sua figura: um homem abusado e um pai e marido abusador. Assim é Santo de casa, novo romance do escritor capixaba Stefano Volp, publicado pela Record.

A narrativa é contada na voz de um dos filhos, que rumina todos os episódios de agressão física e psicológica provocados pelo pai em ensaios dirigidos a sua mãe e a seus irmãos. Encurralado pela masculinidade imposta por Zé Maria e afetado pela violência doméstica sofrida pela mãe, o narrador descreve um lar sucumbido à pobreza, ao racismo e à brutalidade do patriarcado. 

Em uma espécie de autoficção, Stefano Volp esmiúça o luto após a perda de um indivíduo que deixou, majoritariamente, marcas de dor. Experimentando a amargura, o rancor e a tristeza, a história retratada mostra o impacto das pressões de gênero, raça e classe dentro de uma família. 

Leia um trecho a seguir:

Trecho de Santo de casa

cadê os homens da casa, ouvi alex perguntar. quem faz uma pergunta dessas para uma recém-viúva já morreu por dentro. se minha mãe não dissesse ter sentido nada com a morte do seu pai, talvez eu tivesse sentido vontade de quebrar a sua cara. nossa que machão, se arrastando para baixo do beliche pouco antes da sua mãe arreganhar a porta e bisbilhotar o quarto como fazia desde o começo da nossa juventude. deve ter saído, nem percebi, foi o que ela disse. como torci para que ela não recuperasse o hábito do passado e desaguasse meus podres em cima da gringa, que minhas meias viviam asquerosas na sola, que eu deveria lavar as cuecas no chuveiro durante o banho e não jogá-las no tanque, deveria deixar de ser ingrato e me satisfazer com as roupas que ficam apertadas nos meus dois irmãos e passam para mim. se falou qualquer coisa do tipo, não ouvi, porque fechou a porta antes de sair e me deixou preso a mim mesmo.

por três motivos me tornei o monstro debaixo da minha própria cama. o primeiro já falei, o segundo para me esconder da vara do zé maria e o terceiro para me masturbar. Debaixo daquelas tábuas de cortiça descobri o gosto do meu esperma pela primeira vez, sempre ingênuo demais para a idade. quando eu tinha catorze anos os moleques da escola caçoaram da minha cara ao descobrir que eu não fazia ideia do que significava o codinome pão e leite, que pão era uma forma de dizer pau. As pessoas associam sexo à comida como se isso fosse normal, ô fulano eu vou comer seu bolo, comer uma mulher, saborear uma boceta, bater um bolo, lamber um cu, chupar um pau, fulano me dá leite quente. naquela idade as associações não significavam nada para mim, por isso, quando me escondi embaixo da cama e surrei meu pau até ver esguichar o leite prometido por eles, eu pensava no leite que se bebe, como se de repente eu descobrisse que homens podem ser literalmente ordenhados feito vacas, ainda que eu entendesse que aquele leite engravidaria uma mulher. saiu xixi, e dos meus olhos choro, porque eu queria me sentir um homem. passei os dedos pelos estrados da cama, os lábios que beijava às escondidas imaginando alguém por cima de mim. era ali que eu via as revistas pornô do meu pai. nunca me perguntei por que ele as guardava numa pasta em cima do armário nas coisas dele, quem mexesse ali poderia se considerar morto. eram revistas de homem pelado, careca jogador de futebol fazendeiro trigêmeos super-herói esgrimista surfista tudo o que se pode imaginar, achava que ele colecionava esse monte de indecência como qualquer outra coleção do monte de lixo que ele vivia achando pela rua e trazendo para casa, do monte de lixo que às vezes ele era. quando repassei essa história na cabeça e pela primeira vez me perguntei por que inferno ele tinha tantas revistas masculinas com páginas coladas uma na outra eu já era muito vivido. houve uma época em que eram tantas que em vez de devolver comecei a prendê-las entre os poucos estrados da cama para facilitar o meu processo. um dia cheguei da escola e minha mãe tinha dado uma senhora faxina na casa. naquela tarde eu era tão novo que gozava e não saía quase nenhum leite, em compensação nada se comparava ao ápice daquele prazer inexplicável feito um choque que percorria o meu corpo todo e me derrubava logo no final. enfiei-me debaixo da cama com uma lanterninha para sentir tudo mais uma vez, mas para o meu susto nenhuma das revistas estava. não sei se algum dia minha mãe afrontou meu pai com aquilo ou se simplesmente recolheu-as e colocou exatamente no lugar de onde não deveriam ter saído, nas coisas dele. deitado ali, lembrando do passado, espalmei sobre os degraus gastos sentindo saudades daquele tempo. depois tirei a roupa toda, até a cueca, juntei as mãos rente ao peito, fechei os olhos e me imaginei a sete palmos da terra. talvez assim eu pudesse me sentir mais parecido com o meu pai, pelado e morrendo sem os pelados que sempre quisemos, mas nunca tivemos.