Trechos,

A prosa palestina de Mahmud Darwich

Coletânea ‘Diário da tristeza comum’ recupera memórias do cotidiano do poeta sob ocupação de Israel na Palestina e convida a reflexão sobre o projeto sionista; leia trecho

05ago2024 • Atualizado em: 06ago2024
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A coletânea de ensaios do poeta palestino Mahmud Darwich, Diário da tristeza comum, recém-lançada no Brasil pela Tabla, com tradução da professora Safa Jubran, é um soco no estômago. Com edição brasileira dedicada a Gaza e ao povo palestino, as 176 páginas do livro remontam ao passado do autor durante a formação do Estado de Israel.

Nascido na Palestina em 1941, Darwich morreu em 2008 após uma cirurgia no coração. Durante a guerra de 1948, considerado o primeiro conflito árabe-israelense, ele refugiou-se no Líbano com a família. Quando retornou, porém, a pequena comunidade de Al-Birweh, onde nasceu, havia sido destruída pelos militares, que ocupavam o território para criar Israel.

Apesar de publicados originalmente em 1973, em Beirute, capital do Líbano, os textos em Diário da tristeza comum continuam atuais. A coletânea busca gerar uma reflexão sobre a ocupação, o projeto sionista na Palestina que dura até hoje, e sobre o nacionalismo árabe.  

Darwich também é autor de Da presença da ausência, escrito às vésperas de sua morte, e também publicado no Brasil pela Tabla, em 2020.

Leia também: Mahmud Darwich, um dos mais importantes autores da Palestina, ganha uma tradução à altura da sua prosa poética

Trecho de Diário da tristeza comum

O que é a pátria?

O mapa não é a resposta. E a certidão de nascimento não é mais a mesma. Ninguém teve que enfrentar essa questão como você desde este momento até morrer ou se arrepender, ou se tornar um traidor. Contentar-se não basta, pois o contentamento não provoca mudanças nem explode coisa alguma, e a desorientação é imensa. O deserto nem sempre é maior que uma cela de prisão. Então, o que é a pátria? Não é uma pergunta a que você pode responder e depois seguir seu caminho. Sua causa e sua vida são uma só. E antes de tudo — e além disso — é sua identidade. Seria a coisa mais simples de dizer: “Minha pátria é onde nasci”. Mas, se quando voltou, não encontrou nada…

O que significa? Seria a coisa mais simples de dizer: “Minha pátria é onde vou morrer”. Mas se é possível morrer em qualquer lugar, ou na fronteira entre dois lugares… O que significa? Depois de um tempo a questão se tornará mais difícil. Por que saiu? Por que saiu? Há vinte anos você se pergunta: “Por que eles saíram?”. Sair não nega a pátria, mas transforma o problema em questão. Não escreva a história agora. Para tanto é preciso sair do passado, e o que se faz necessário agora é chamar o passado para prestar contas. Não escreva história a não ser a de suas feridas.

Não escreva história senão a de sua ghurba. Você está aqui — aqui, onde nasceu. E onde a saudade o levará à morte. Então, o que é a pátria? Você é parte de um todo, e esse todo está ausente e sujeito à aniquilação. Por que passou a ter medo de dizer: “Pátria é onde meus antepassados viveram”? Porque você rejeita o pretexto de seus inimigos; afinal, é isso que eles dizem também.

— O que você aprendeu na escola?
— Salam ao pássaro que volta da terra distante para minha janela no exílio. Ó pássaro, diga-me: como estão meus antepassados e meu povo?
— E a canção que vinha antes dessa?
— Eles apagaram.
— Como era a letra da canção que eles apagaram?
— Salam a ti/ Terra de meus antepassados/ Em ti é bom habitar/ Em ti é bom cantar.

Não há uma grande diferença entre as duas canções, exceto a que existe entre uma saudade que vem de longe e uma saudade que surge de perto. Ambas as canções declaram o amor pela mesma terra e definem a pátria em termos de ancestralidade. A primeira é de um poeta judeu que viveu na Rússia e a segunda, de um poeta árabe que viveu na Palestina e nunca viu o exílio nem ouviu falar dele. Em pouco tempo a primeira canção superou a segunda, e o segundo poeta começou a cantar sua saudade da pátria distante. Os jovens que permaneceram na pátria foram proibidos de cantar a canção do poeta deles. Seu caminho para um futuro virou refém do domínio das canções do poeta judeu que vivia na Rússia. O professor árabe que ousou ensinar uma canção de amor à pátria perdeu o emprego, acusado de antissemitismo e incitação contra o Estado de Israel. Então crescemos um pouco e eles nos ensinaram os épicos difíceis do poeta judeu; e de Almutanabbi ficamos apenas com isto: A inimizade está em você, e você é o inimigo, e você é o juiz.

Eles são os inimigos e eles são os juízes.

E são eles que definem o que é a pátria para nós. Eles dizem:

Fugirás do Egito com Moisés, que golpeará o com seu cajado. O mar se abrirá e as tribos de Israel passarão. O mar, então, devorará teus inimigos. Ficarás no deserto do Sinai por quarenta anos. Farás as pazes com o Senhor e depois voltarás…

Eles são os inimigos e eles são os juízes. 

E são eles que definem o que é a pátria para nós:

Theodor Herzl sentou-se e pensou no destino de seu povo perseguido. Ele veio com a ideia do sionismo como o único caminho para a única salvação segura. Os judeus não se realizarão e não serão capazes de concretizar a missão histórica do renascimento judaico, a não ser com o retorno à pátria de seus antepassados… à Palestina.