Trechos,
A mitologia moderna de Linda Boström Knausgård
Em ‘A catástrofe da Hélios’, sueca atualiza o mito de Atena explorando questões de saúde mental; leia trecho
12ago2024Na mitologia grega, Atena era a filha de Zeus. Nascida ao sair da cabeça de seu pai, era considerada por isso a deusa da sabedoria. Em A catástrofe da Hélios, a sueca Linda Boström Knausgård faz uma espécie de versão moderna do mito. O romance acaba de ser lançado no Brasil pela Rua do Sabão, com tradução de Luciano Dutra.
Escritora premiada,Linda é autora de A pequena outubrista e Bem-vinda à América, ambos publicados no Brasil pela Rua do Sabão em 2021.
Em A catástrofe da Hélios, ela cria e desenvolve o que se passa pela mente de uma menina de doze anos que vive em uma pequena cidade na Suécia e é separada de seu pai, que tem problemas psiquiátricos. Enviada a uma nova família, a personagem é internada após um episódio de depressão.
Linda, que foi casada com o escritor norueguês Karl Ove Knausgård, foi internada várias vezes para tratar episódios de depressão profunda e tratada com eletrochoques — Karl Ove descreveu as crises depressivas da ex-mulher em sua trilogia Minha Luta.
Leia a seguir um trecho do romance de Linda Boström Knausgård
Trecho de A catástrofe da Hélios
Nasço de um pai. Fendo a cabeça dele. Por um instante, longo como a própria vida, ficamos um de frente para o outro e nos olhamos nos olhos. Tu és o meu pai, eu digo a ele com o olhar. O meu pai. É o meu pai que está à minha frente na poça de sangue no chão. As meias de lã dele sorvem-no sofregamente e tingem-se de rubro. O sangue penetra no assoalho gasto e eu penso: os olhos dele são verdes como os meus.
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Como eu sei disso ao nascer? Que os meus olhos são verdes como o mar? Ele olha para mim. Para a minha armadura brilhante. Ele ergue uma de suas mãos. Acaricia a minha bochecha com a mão. E eu ergo uma das minhas mãos e pego na mão dele. Me inclino na direção dele. Os braços dele me envolvem. Choramos juntos. Lágrimas quentes, salgadas, e o ranho escorre pelo meu rosto. Não quero mais nada além de estar assim junto com o meu pai e sentir o calor dele, ouvir as batidas do coração dele. Tenho um pai. Sou filha do meu pai. Essas palavras soam como sinos dentro de mim nesse instante. Então ele urra.
O urro destroça tudo. Nunca mais vou estar próxima dele. Nunca mais deitar a minha cabeça no peito dele. Nos encontramos e temos que dar adeus imediatamente. Ele não podia fazer mais nada além de me dar vida. O urro aperta os meus lábios, que querem gritar para ele parar. Tu me assustas, cresce dentro da minha boca. As minhas têmporas doem. Todo o amor se transforma em raiva no meu peito. Enquanto ele urra, eu penso e logo quero atingi-lo no coração com a lança para dar um fim naquilo. Estou assustada. Sou só uma criança. Ele não para de urrar. Ele leva as mãos à cabeça. Aperta-a com as mãos fortes como que para voltar a fechar o que se abriu.
Desvisto a armadura e escondo a lança debaixo do catre na cozinha. Já o elmo eu levo na cabeça, ao sair pela primeira vez para o mundo lá fora. Tenho doze anos quando apareço num município no norte da Suécia. Piso na neve de pés descalços. Não vou muito longe. Uma menina nua com um elmo de ouro na cabeça. Além disso, muitos viram a ambulância que veio buscar o meu pai, depois que o casal de vizinhos veio correndo para ver o que havia acontecido. O urro foi ouvido de longe. E os vizinhos que me viram de armadura no assoalho da sala de estar do meu pai queriam saber. Eu estava escondida? Quem era eu? Uma criança que ninguém nunca viu. Onde estavam a minha mãe e o meu pai?
Tudo era um caos. O que é que eu devia dizer?
— Eu sou a Greta. Quem és tu? — a vizinha perguntou. Não respondi. De repente, eu sentia a minha língua enorme e disforme, grossa e desconfortável.
— Tens que vestir alguma coisa. Ela tirou a sua parca e cobriu-me com ela. Pegou cautelosa mas decididamente no meu cotovelo e me levou até a casa deles, que ficava na mesma rua do meu pai. Ela me levou daquele jeito até o aconchego do lar, como aparentemente as pessoas dizem, e até a cozinha, onde me fez sentar numa cadeira. O que faço agora? Os pensamentos fervilhavam na minha cabeça e senti vontade de olhar nos olhos do meu pai. Em vez disso, ganhei leite quente com mel e canela e algumas roupas.
— Eu te ajudo com isso — ela disse, ao ver que eu apenas olhava fixamente para as roupas.
— Menina querida. Aqui estão as calcinhas, vamos lá. Primeiro uma perna, depois a outra.
Ótimo. Agora as ceroulas. São de lã, assim não vais congelar. Afinal, faz bastante frio aqui na região nessa época. Hoje está fazendo vinte graus negativos. Depois a camiseta. Podes ficar com essas roupas. Já não me servem. Ela me vestiu dos pés à cabeça. Calças e blusão e seja lá como o resto se chama. Também ganhei uma jaqueta e gorro e luvas. Lembrei da armadura escondida debaixo do catre na cozinha e tive vontade de voltar lá.
— Agora tens que dizer quem és — Greta falou assim que terminei de tomar o leite e de
comer o sanduíche de carne de rena. Carne de rena, pensei, memorizando as palavras. O gosto de sal e sangue.
— Quero ver o meu pai — respondi.
— Minha querida. O Conrad não tem filhos.
— Ele tem a mim — retruquei, já me levantando da cadeira.
A Greta me olhou com um semblante sério.
— Ele fez alguma coisa errada contigo? Afinal, o Conrad é mesmo um tanto esquisito.
— Não.
Um pai seria capaz de fazer algo errado com a própria filha? Com o sangue do seu sangue?
— Ele te mantinha escondida?
A Greta era uma pessoa bondosa. Percebi isso, apesar de que a coisa que eu mais tinha vontade era a de arrebentar a cadeira em que estava sentada e destruir a casa toda por ela ter dito aquilo a respeito do meu pai. Ela não sabe de nada, o pensamento que me ocorreu nessas palavras me acalmou e compreendi duas coisas: que ninguém jamais iria entender como eu apareci na cozinha do Conrad e que, portanto, eu andaria só pelo resto da minha vida.
A Greta me levou de carro até o serviço social do município. Ela tinha feito uma ligação e eu ouvi as palavras: a menina, o Conrad. Não sei o que fazer. Realmente, não posso ficar com a menina aqui em casa. E depois, isso: se não soubesse a verdade, eu acharia que aconteceu um milagre. Milagre. Foi essa palavra que se fixou e eu não sabia onde depor aquela palavra, então olhei para a Greta para impedir que mais palavras saíssem da sua boca.
O meu pai sofreu um ataque agudo de esquizofrenia e foi transferido ainda urrando ao hospital psiquiátrico de Skellefteå, onde a versão dele do ocorrido foi ignorada e suas dores de cabeça foram tratadas com medicamentos tão fortes que no fim ele mesmo começou a duvidar que aquilo tivesse realmente acontecido. Mas eu ainda não sabia disso ali sentada no carro da Greta e olhando para toda aquela branquidão. Eu ainda achava que iria morar na casa de capachos imundos e janelas pedindo para serem lavadas. Ainda achava que o Conrad iria voltar e que nós seríamos pai e filha como definido naquele momento em que as coisas ainda iam bem para nós dois. Neve. Neve. Aprendi essa palavra de imediato. Compreendi que era uma palavra importante. Era a única coisa que eu via, além da estrada e da Greta.