Biografia, Trechos,

A história de Conceição Evaristo em vozes, memórias e relatos

Em ‘Conceição Evaristo: voz insubmissa’, Yasmin Santos reúne momentos da trajetória da escritora mineira e traça a primeira biografia dedicada a ela

25nov2024 • Atualizado em: 26nov2024
Conceição Evaristo (Reprodução)

A autora de Olhos d’água, Ponciá Vicêncio, Becos da Memória e outros clássicos da literatura negra brasileira contemporânea ganhou a sua primeira biografia, escrita pela jornalista e editora carioca Yasmin Santos. Publicado pelo selo Rosa dos Tempos, do grupo Record, Conceição Evaristo: voz Insubmissa percorre a trajetória da escritora, desde o primeiro concurso de escrita ganho por Evaristo até sua consolidação na carreira.

Conceição Evaristo autografa o livro Olhos D’água para Yasmin Santos em 2019 (Divulgação)

A partir de depoimentos e pesquisas, Yasmin mostra como diferentes momentos da vida de Evaristo a levaram a se tornar escritora, como suas vivências na comunidade do Pindura Saia, sua jornada como professora, a mudança de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro e a aproximação com o movimento negro.

Neste ensaio biográfico com organização e prefácio de Joselia Aguiar, Yasmin Santos relaciona sua própria história pessoal como escritora negra com o legado construído pela biografada. Além de ser a primeira obra a contar a trajetória da autora imortalizada pela Academia Mineira de Letras, Conceição Evaristo: voz Insubmissa é também um retrato da realidade de escritoras negras e pobres no Brasil. 

Leia um trecho a seguir. 

Trecho de ‘Conceição Evaristo: voz insubmissa’

Foram as mãos lavadeiras de Joana, acostumada a riscar sóis ao chão, que guiaram os dedos de Conceição no exercício de copiar o próprio nome, as letras do alfabeto, as sílabas, os números, difíceis deveres de casa para crianças oriundas de famílias semianalfabetas. Foram as mãos de Joana, que folheavam revistas velhas, jornais e poucos livros recolhidos dos lixos e recebidos na casa das patroas, que aguçaram e mantiveram viva a curiosidade de Conceição para a leitura e a escrita. Mãos lavadeiras que pacientemente costuravam cadernos feitos com papéis de pão e que evidenciavam a riqueza do cuidado e a pobreza material dos Evaristo numa escola que recebia a classe média belorizontina. 

A imagem materna é, provavelmente, o mais poderoso e universal dos arquétipos; é o primeiro ser feminino com o qual o ser humano tem contato. A relação com a mãe funda e modela nosso barro emocional, a terra da qual tiramos o molde de nossos relacionamentos. Dos papéis femininos, é provavelmente a maternidade que sofreu sempre maior pressão no sentido de manter uma imagem idealizada de mulher, relacionando-a ora à própria natureza, num determinismo redutor, ora ao sagrado ocidental, impondo-lhe o sobrenatural.11 

Existem muitas formas de maternar. Há um par de séculos, exercer a maternidade constituía em relegar o cuidado da prole branca a amas de leite e babás negras que, supunha-se, eram capazes de amar mais os filhos de seus escravizadores do que os próprios.12 Muitas das personagens negras presentes em obras clássicas da literatura brasileira são exemplos de como a arte não deixou de reforçar estereótipos ocidentais de inferioridade e animalidade de nós, pessoas negras, afro-brasileiras.13 Figuras como a protagonista de A escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães, ou as personagens Rita Baiana e Bertoleza de O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, não só carregam traços estereotipados, mas também trazem a marca da esterilidade. Nenhuma delas vive a experiência de ser mãe. “A minha pergunta tem sido esta: quando a literatura brasileira é incapaz de ficcionalizar a mulher negra como mãe, no nível do inconsciente, no nível do recalcado, não estaria a literatura negando uma matriz africana na sociedade brasileira?”, questiona Conceição.14 

A maternidade negra está na gênese de sua criação literária. Na contramão do cânone, Conceição restitui às mulheres negras o direito à maternidade, com todas suas complexidades e imperfeições – assim como no maternar de dona Joana, que, apesar da miséria material e da posição de suposta inferioridade ante às patroas, não abria mão de ir aos céus buscar pedaçosde nuvens para adoçar a imaginação e as bocas famintas de seus nove filhos. 

A imagem de sua mãe, que se agachava perto do rio e desenhava o sol para que ele existisse e as roupas secassem, deu à menina o sentido da invenção, da superação e da realidade transformada pelo risco em chão de areia. Depois, vieram as muitas mulheres, parentes e vizinhas, nas histórias da resistência, da dor, da alegria e da invenção: “Como ouvi conversas de mulheres!”, escreve. “Falar e ouvir entre nós era talvez a única defesa, o único remédio que possuíamos. Venho de uma família em que as mulheres, mesmo não estando totalmente livres de uma dominação machista, primeiro a dos patrões, depois a dos homens seus familiares, raramente se permitiam fragilizar.”15 

Em Becos da Memória há uma profusão de vozes de mulheres-mães da favela. Vó Rita é a mãe velha, semelhante a Iemanjá, senhora de autoridade tipicamente maternal, que era obedecida e respeitada pela fala e pelas ações; que socorria os que eram abandonados e dissolvia atritos; aquela que transforma habilidade aprendida na experiência em solução improvisada; é dela a mão que, na falta de assistência pública, guia os partos na favela. Trágico é o destino de Tetê do Mané, mãe de Nazinha, que vende a filha na esperança de salvar a si, o filho doente e, na sua visão distorcida pela ignorância e miséria, a própria menina da pobreza. Já a situação de outra personagem – Custódia – denuncia a tensão de classe e a situação de gênero. Cheia de filhos, vivendo com o marido alcoólatra e a sogra que não tolerava novas crianças a agravar a miséria, é surrada pela sogra até abortar. 

Em um só livro, Conceição constrói situações que revelam a complexidade da experiência materna dentro de uma realidade social precária, construindo retratos de conotação social, política e de gênero, afastando-se do padrão idealizado e enquadrando-se esteticamente na contemporaneidade. Um rosário de mulheres, que se irmanam numa compreensão profunda do que são, trocando experiência, afeto e proteção. Essas mulheres não têm a leveza ou a sacralidade das mães construídas pela imaginação branca e masculina; ao contrário, estão quase sempre envolvidas em lida, sangue e lágrimas, e, talvez por isso mesmo, conseguem partilhar força, ternura e experiência entre gerações.