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Um passeio por Nova York com Lou Reed

Primeiro biógrafo a acessar o acervo do compositor, Will Hermes faz um relato profundo sobre uma das figuras mais complexas do rock; leia trecho e ouça playlist

26ago2024 • Atualizado em: 27ago2024
Reed em apresentação na casa de shows Winterland Ballroom, em São Francisco, em 1974 (Larry Schorr/Divulgação)

A biografia Lou Reed: o rei de Nova York, de Will Hermes, com tradução de Lívia de Almeida, acaba de chegar às livrarias brasileiras pela BestSeller. Editor da Rolling Stone, o jornalista e crítico de música estadunidense faz um relato profundo de uma das figuras mais complexas do rock.

Em 560 páginas, Hermes aborda desde a carreira de Lou Reed como compositor do The Velvet Underground até episódios da vida pessoal do artista, abordando suas influências, contribuições musicais e impacto cultural.

Primeiro biógrafo a conseguir acessar o acervo do compositor na Biblioteca de Nova York, Hermes entrelaça a trajetória de Reed aos seus relacionamentos complexos com David Bowie, Andy Warhol e o parceiro de banda John Cale, além de suas interações com fãs, jornalistas e com a cidade de Nova York.

Em uma mistura de rock e lirismo literário, a influência de Reed ainda é enorme na cena musical atual. A relação com a literatura aparece em diversos versos. Em “Talking Book”, o compositor, que morreu em 2013, deseja um livro que o aconselhasse. 

I wish I had a talking book/ that told me how to act and look/ A talking book that contained keys/ to past and present memories

(Queria ter um livro falante/ que me ensinasse como agir e parecer/ um livro falante com as chaves/ de memórias passadas e presentes)

A Quatro Cinco Um preparou uma playlist com as canções preferidas da redação para ouvir enquanto se lê. Dá o play e leia um trecho a seguir. 

Trecho de ‘Lou Reed: o rei de Nova York’

No fim de maio de 1960, Lou Reed estava em Freeport, morando com os pais. Art Littman e outro amigo foram visitá-lo. “Ele parecia o mesmo. Só um pouco mais trêmulo que o normal. De vez em quando, a voz dele tremia um pouco também”, lembra ele. A mãe de Reed o mimava. Ela preparava o almoço para os rapazes, e eles ficavam ali jogando conversa fora, como sempre. Reed não comentou com os amigos sobre a terapia de choque. “Ele contou de um tratamento que estava fazendo para algum problema mental, mas não conseguimos descobrir do que ele realmente estava falando. Também contou que tinha que mergulhar o próprio saco em leite”, Littman riu. “[Achamos] que ele estava brincando…” 

Ele imaginava que Reed voltaria à NYU. Para sua surpresa, seu amigo inteligente e esperto decidiu se transferir para a Syracuse. “Não parecia uma boa ideia. A Syracuse era uma faculdade de elite famosa por suas festas. O que Lou Reed ia fazer lá?”, comenta ele. Numa carta calorosa e sarcástica que escreveu a Littman depois do primeiro semestre na Syracuse, Reed não discordou. Começou dizendo que estava em recuperação: “Esta faculdade é insuportável de várias formas, mas no geral gosto mais dela do que da NYU. A não ser pelo fato de você estar aí e eu estar aqui no norte. Aquela coisa da psicose acabou, e agora estou relativamente equilibrado… ha ha”. 

Reed repreendeu Littman por não manter contato e se queixou da inescapável cultura de fraternidade da Syracuse, reclamando que os estudantes são “cabeças-duras”, “patriotas” e “bem pouco inteligentes”. Ele também se gabou de seu programa de jazz na rádio universitária WAER, muito no espírito daquele na WNYU com Littman. Na verdade, tinha chamado a atenção imediatamente, recebendo de cara uma reprimenda do diretor da faculdade de música, que dizia que a mistura de jazz de vanguarda, rock ‘n’ roll e rhythm and blues dava dor de cabeça na mulher dele.

Mesmo assim, deve ter sido difícil para Reed ter que começar do zero. No início do ano letivo, em setembro, ele voltara a ser calouro, pois não havia concluído o primeiro ano na NYU. Não eram só as fraternidades machistas que marcavam a vida na nova faculdade, a cultura esportiva também era forte. Era da Syracuse o melhor time de futebol universitário do país na época: os Orangemen, com Ernie Davis (vencedor do Troféu Heisman) e John Mackey (futuro membro do Hall da Fama). Reed tinha pouco interesse nisso tudo e não fazia questão de ingressar numa fraternidade, mas, como escreveu a Littman, reconhecia que, do ponto de vista social, “você está ferrado se não fizer isso”.

Apesar de ter sido fundada pela Igreja Metodista, a Syracuse não era, em 1960, uma instituição sectária. Contava com um grande corpo discente judeu vindo do sul do estado de Nova York, o que lhe rendeu o apelido de “Harvard Judaica” numa época em que as políticas de admissão nas universidades que compunham a Ivy League eram consideradas antissemitas, o que era verídico. Tinha até fraternidades judaicas lá. “As mais importantes estavam todas na mesma área da Comstock Avenue”, lembra David Weisman, amigo de Reed.

“Havia os ZBTs [Zeta Beta Tau] (Zilhões, Bilhões e Trilhões, como eram chamados), que eram os judeus abastados. Os AEP [Alpha Epsilon Pi] eram os judeus bonitos e abastados, um tipo descolado de novos-ricos que vinham de Manhattan e da Five Towns — sempre à espreita, todos muito estilosos, com suéteres de angorá, calças em estilo continental, conversíveis Bonneville e Corvettes vermelho-maçã. Já os Sammies [Sigma Alpha Mu] eram atletas judeus abastados.” Foi aos Sammies que Allan Hyman se juntou ao chegar na Syracuse.

Ele encorajou Reed a entrar também, embora fosse se arrepender depois. Syracuse também se destacava do ponto de vista acadêmico e se orgulhava de ter uma das primeiras faculdades de artes plásticas e cênicas do país. A Crouse College ficava no edifício mais espetacular do campus, uma espécie de castelo neorromânico construído na década de 1880. Reed teve aulas lá, onde conheceu Weisman, um aluno de artes bonito e ambicioso, com cabelo escuro e curto e óculos de armação grossa, que estava fugindo de sua infância sufocante na cidade de Binghamton, no sul do estado de Nova York. “Eu o conheci na aula de desenho, a gente se sentava um ao lado do outro. Lou não sabia desenhar muito bem, eu me lembro disso”, recorda Weisman.

Os dois vinham de famílias humildes, se comparados com muitos de seus colegas. Ambos eram judeus e se interessavam pelas artes. Weisman achava o futebol americano deplorável. Eles se deram bem de cara, e era nítido que rolava uma química entre os dois. “A gente tinha um segredo nosso, a sexualidade”, conta Weisman. “Ele era muito, muito afetuoso comigo. Nunca vi o lado perverso de Lou; ele ficava todo bobo e carinhoso.” Anos mais tarde, quando Reed descreveu como se apaixonara por um cara aos 19 anos, é provável que se referisse ao colega. Segundo ele, “foi simplesmente a experiência mais incrível. Nunca se consumou. Eu me sentia muito mal com a situação porque eu tinha namorada e sempre dava uma fugidinha — e não gosto de enganação. Não conseguia descobrir o que estava errado. Queria resolver e deixar tudo bem. Achei que, se eu parasse para pensar no assunto, seria capaz de me endireitar […] para que eu pudesse ‘fazer as coisas da maneira certa’”.

Outro segredo entre Reed e Weisman envolvia a eletroconvulsoterapia. “Minha mãe tinha feito terapia de choque um ou dois anos antes. Aquilo estragou completamente a minha vida”, revela Weisman. Reed confessou sua provação “numa daquelas conversas sem rumo que duram a noite toda, quando de repente o assunto veio à baila”.

Às vezes, os dois comiam nos restaurantes baratos da Marshall Street. Certa noite daquela época, eles estavam debruçados sobre o balcão do Savoy assistindo ao debate entre o senador John F. Kennedy e o vice-presidente Richard Nixon numa tv em preto e branco. Em seu sotaque retumbante de New England, Kennedy falou sobre aumentar o salário mínimo para 1,25 dólar a hora. Weisman achou que Kennedy, elegante e descontraído num terno escuro, farta cabeleira, lábios carnudos e olhar firme, parecia um galã de cinema. “Ele não vai conseguir ganhar”, disse Reed. “Ele é bonito demais.”