Literatura, Trechos,
O curso de um conflito
Em ‘A cegueira do rio’, Mia Couto discute colonialismo e organização popular a partir da preservação da memória cultural e da língua; leia trecho
04nov2024 • Atualizado em: 08nov2024Inspirado em conflitos que aconteceram em Moçambique no contexto da Primeira Guerra Mundial, o romance A cegueira do rio, do moçambicano Mia Couto, chega às livrarias nesta semana, publicado pela Companhia das Letras. A história narra o confronto entre alemães e portugueses pelo território próximo ao rio Rovuma, na fronteira entre Moçambique e Tanzânia.
O autor de Terra sonâmbula (Companhia das Letras, 2016) e vencedor do Prêmio Camões usa esse pano de fundo para discutir o colonialismo e apresentar a luta da população local, subjugada pelo domínio português e ameaçada pelo novo invasor.
Acompanhando um oficial português e seu agregado moçambicano, um sipaio (soldado nativo), o romance mostra como a organização de um povo, a partir da preservação de sua memória cultural e sua língua, foi crucial para sua sobrevivência. Leia um trecho a seguir.
Trecho de ‘A cegueira do rio’
Apoiado no sipaio Nataniel Jalasi, o sargento português Bruno Estrela arrastou-se pela margem lodosa do rio Rovuma. Custava-lhe caminhar. Trazia um continente agarrado aos pés. Para os europeus, o Rovuma era uma fronteira separando a “África Oriental Portuguesa” da “África Oriental Alemã”. Para os africanos, o rio era uma mulher que engravidava com as grandes chuvas. A verdade era esta: ambas as margens eram habitadas por gente que, todas as noites, rezava aos mesmos deuses. O rio escutava as preces e voltava a ser nuvem.
— Que dia é hoje? — perguntou o sargento, os olhos piscos enfrentando o brilho das águas.
O sipaio fez menção de responder. Ficou-se pela intenção. Era o dia 24 de agosto de 1914. No posto militar de Madziwa, os dias nasciam todos sem vida. O sipaio procedeu como se faz com os nados-mortos: não se lhes dá nome nenhum. E assim eles podem ainda nascer.
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O aquartelamento ocupava o topo da duna que dominava a vasta planície por onde, na estação das chuvas, o rio se espraiava. A cabana onde vivia o sargento estava cercada por uma extensa varanda feita de madeira e suspensa sobre troncos de mbawa. A uns poucos metros, já no limiar da mata, tinham construído duas grandes palhotas onde dormiam nove sipaios. A toda a volta do posto foram abertas trincheiras reforçadas com sacos de areia.
Madziwa era um povoado mais deitado que um rio. Nos momentos de nevoeiro não se dava pela construção. Os viajantes passavam pela aldeia como se caminhassem entre nuvens. Os naturais de aldeia diziam: vivemos no cacimbo. Onde iremos cavar as nossas sepulturas?
Athawa mfuu yake yomwe.
[O homem foge da sua própria voz.]
Provérbio nyanja
Naquela manhã, com a mão em pala sobre os olhos, o sargento Estrela perscrutou a outra margem do Rovuma. Há semanas que lhe doía a luz dos trópicos. Uma misteriosa doença tinha-lhe toldado a visão. Não deixava de ser irónico: estava quase cego o militar a quem Portugal confiara o controle da mais vulnerável das suas fronteiras.
— Não me vais dizer que dia é hoje? — voltou a indagar o português.
A pergunta era retórica. O sargento Estrela não tinha qualquer interesse nem na guerra, nem no calendário, nem em qualquer outro assunto. Seis meses tinham decorrido desde que chegara de Lisboa para comandar o posto de Madziwa, no norte de Moçambique. Depois de todo esse tempo, o sargento queria apenas escutar alguém que falasse a sua língua. O sipaio Nataniel dominava quatro idiomas: português, ciyao, cinyanja e emakwa. Para os ouvidos carentes do sargento, o sotaque do africano soava como o da longínqua gente da sua aldeia natal.
Sou o sipaio Nataniel Jalasi. É verdade o que aqui se conta. No dia 24 de agosto, o sargento Bruno Estrela aproximou-se vagarosamente do rio como se fosse a primeira vez que caminhava. Muitas vezes me disse: em África o chão é muito antigo, mas os caminhos são sempre recém-nascidos. A razão é simples: os carreiros desaparecem na estação das chuvas. Pessoas e bichos fazem-nos renascer, teimosos rabiscadores da poeira.
Os europeus não acreditam — e mesmo eu, que sou africano, tenho as minhas dúvidas — que o rio todas as noites se levante do leito. Com o português sucedia o inverso: o homem não descolava os pés do chão. Aos poucos, foi deixando de se aventurar para além dos limites do posto. Por mais que carregasse uma espingarda, sentia-se desarmado. Por mais que caminhasse sozinho, tinha a certeza de que estava a ser observado.
Aos poucos, os medos do português acabaram por me contaminar. Eu, Nataniel Jalasi, africano congénito e vitalício, comecei a sentir-me um estranho em África. O meu receio era que os meus irmãos deixassem de me reconhecer. Alguns já me chamavam de muzungo. De algum modo, tinham razão. Uma parte de mim começava a ser de raça branca. Essa parte tinha sido batizada, ajoelhava-se na igreja, rezava em português e envergonhava-se desses outros deuses que desamarram as chuvas e abençoam as caçadas e as colheitas. Quem sabe os meus irmãos tivessem razão: havia uma raça que se evadia do meu corpo, da mesma maneira que o rio escapa da terra e se torna nuvem.
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