

Literatura brasileira, Trechos,
Viagem ao inesperado
Originalmente publicado em 1942, O louco do Cati, obra-prima de Dyonelio Machado, introduz um olhar novo e inventivo sobre as figuras marginalizadas da sociedade
13jan2025 • Atualizado em: 14jan2025Um dos clássicos do romancista e contista gaúcho Dyonelio Machado (1895-1985) acaba de ganhar uma nova edição, publicada pela Todavia. Em O louco do Cati, o vencedor do Jabuti por Endiabrados (1980) acompanha a viagem feita pelo louco, iniciada inesperadamente quando o personagem é levado por alguns jovens a uma excursão pelo litoral brasileiro.
A viagem contraria as expectativas do louco. Preso arbitrariamente, o personagem vive o amargor do cárcere durante parte da narrativa, que se insere no contexto ditatorial do governo de Getúlio Vargas.

Retratando esse protagonista sem nome e sobrenome, com vagas informações sobre sua própria história e poucas falas ao longo do livro, Machado faz uso da literatura para lançar a sua perspectiva sobre as turbulências sociais da época e os tipos marginalizados e deslocados da sociedade.
Leia um trecho a seguir:
Trecho de ‘O louco do Cati’
Aquele ali já tinha ouvido falar no Cati… Claro! — E a voz de Norberto exprimia quase desdém. — Quem é que não conhece o Cati?
— Sim… — Seu Ricardo meio que encabulou. — Conheço, lógico, o Cati. O João Francisco…
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Maneco não sabia exatamente o que era o Cati, mas em compensação conhecia bem esse João Francisco.
— A sua fama ultrapassou o Rio Grande. — Norberto animou-se: — No próprio Rio da Prata… — Susteve-se. Depois acrescentou: — Um caudilho perigoso. Cabeleira de gaúcho.
Mas um deles quis saber por que é que o governo consentia na existência de uma fera dessas…
— “Hiena do Cati”. — O seu Ricardo ficou satisfeito com a sua interrupção.
— Por que consentia?… Mas se não fosse ele, seria qualquer um outro. O homem não tinha importância. — E Norberto contou-lhes esta História:
Havia terminado a revolução com a vitória do governo. Era um fim de século — século dezenove. Fim de mundo… A campanha, principalmente a fronteira — ninho de revolucionários — não estava ainda “pacificada”. Fazia-se necessário isso que depois as guerras iriam chamar “operações de limpeza”. (Compreendiam… Compreendiam…) Bem: essa limpeza se inaugurou, se consolidou, se prolongou. Tornou-se coisa regular. — Uma espécie de banditismo legal, entronizado naquele “Castelo”, sobre uma elevação às margens dum arroio, nas caídas dum dos rios que têm mudado de pronúncia com a mudança de fronteira de dois povos inquietos. — Mas, é claro, uma tarefa de tal ordem (“Ordem pública! Ordem pública!”) punha nas mãos dos homens do Cati uma enorme soma de poder: poder pessoal, poder político, poder!… Já nada mais se fazia então naquela vasta zona sem consultar o Cati. O Cati era o Subestado. Era o Estado para aquela região. Não raro entrava em conflito com o verdadeiro Estado, e o vencia. Polvo (Norberto gostava muito da palavra pejorativa “polvo”), estendia tentáculos, atava, arrastava, triturava. A simples companhia de volantins que demandava Livramento, vinda do oeste, fazia a travessia pelo outro lado da linha, pelo estrangeiro, prá não ter de passar pelo Cati (— Passar pelo portão do Cati era obrigatório —). Por causa das mulheres… Não respeitavam nem as mulheres. E os pais e os irmãos é que pagavam, atirados nos poços medievais. Daí, quando saíam, era quase sempre degolados. Todos os que caíam eram degolados: por motivos pessoais, por motivos políticos, comerciais, por qualquer motivo… Altivo e frio, o Cati apertava, arrastava, triturava. E durante anos, anos. Fez-se uma legenda, real, verdadeira, de sangue, de morte, de terror feudal. — Nós ficamos um pouco célebres, respeitados, admirados, por essa Legenda.
Ali fora, aquela espécie de clareira, formada pelo recuo das casas, das instalações, das árvores, estava cheia da luz da manhã. A sombra do Borboleta, que o tornava quase irreconhecível de tão oblíqua, fazia uma faixa diagonal, dum azul violáceo.A conversa deles dispunha-se em dois “planos”, como num quadro: — e era urgente passar ao primeiro plano.
— O que é que você acha desta coisa? Não será troça dele? — quis saber o Manivela.
— De quem? Do…? Dele?
— Sim, do louco… Desse… — E abraçando com o olhar as “instalações”: — esse do Cati!
Não, não era troça. Era preciso ter visto a sua cara, o seu olhar. Ele estava aterrorizado.
— Mas então… — O dono da hospedaria refletia, ruminava, hesitava.
— Mas ele é furioso?…
O pessoal se entreolhou, com caras de sem-vergonha. É que ninguém o conhecia…
— Como?! — Seu Ricardo fez a sua ruga de espanto digno, de censura.
Sério: ninguém ali sabia quem era esse sujeito. Maneco teve um sorriso malandro e um virar de olhos, que metiam toda a culpa ao Norberto.
— Nada disto! — A sua desculpa era frouxa, de olhos que bailavam daqui prá ali, sem se fixarem em ninguém. Era um companheiro de viagem… apenas…
— Pode-se exigir credenciais de um companheiro de viagem? Pode-se? — Eles calaram. — Então não se viajaria em trem, em navio, em avião, em ônibus.
— Mas o Borboleta não é ônibus.
— Pra ônibus, agora, pouco falta…
(Sorrisos.)
Seu Ricardo ouvia impassível e de cara amarrada. Depois de um silêncio abriu a boca:
— Os senhores então não são amigos. Pensei que todos fossem amigos, inclusive o… esse maluco. — E apontou prá os lados do pequeno mato.
— Não…
— Sim!…
— Claro! — fez Norberto precipitadamente. — Somos amigos! Estamos fazendo um passeio de amigos, uma viagem de prazer.
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