Literatura brasileira, Trechos,
Fernanda Young revela seus amores e aborrecimentos em livro inédito
‘Chatices do amor’ reúne os dois últimos romances da roteirista e atriz morta em 2019; leia trecho
14out2024Publicado postumamente, Chatices do amor, de Fernanda Young, reúne dois romances inéditos da escritora e atriz: O piano está aberto e O livro. Eles foram publicados pela Record na última versão deixada por Young, que morreu aos 49 anos, em decorrência de uma crise asmática intensa, em agosto de 2019. Três meses depois, ela ganhou o prêmio Jabuti por Pós-F: para além do masculino e feminino.
Na apresentação de Chatices do amor, a agente literária e editora de Young durante sua trajetória como escritora, Eugênia Ribas-Vieira, escreve que o livro foi concebido a partir de “projetos soltos, nunca publicados, recortados, repensados e retrabalhados pela autora”.
“O tema fundamental da obra de Fernanda Young: o amor – principalmente – e suas chatices – suas derivações, menores, talvez, do que o próprio amor, mas capazes de atrapalhá-lo, de destruí-lo, por vezes”, escreve Ribas-Vieira.
Em O piano está aberto, Young escreve sobre amor e depressão. Já O livro, que seria o último título da escritora, nasceu após uma consulta de Young com sua analista, que a obrigou escrever um novo texto antes de retornar à sessão. Leia um trecho a seguir.
Trecho de ‘Chatices do amor’
Ele não esperou ela sair do banheiro. Abriu a porta, que não estava trancada à chave, surpreendendo-a de touca de banho, coisa que a aborreceu, pois não acha elegante a imagem de uma mulher com os longos cabelos abafados num saco plástico, ainda mais nessas toucas de hotel; ele não notou nada de patético na cena, apenas anunciou:
— Fiz uma coisa horrível – gaguejante e com os olhos azuis apertados num vermelho de total desespero, ele meteu-se dentro do aposento mínimo e esfumaçado – Uma coisa horrível…
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Pela intimidade que partilham, ela logo imaginou algo bastante sério, pois não é do feitio dele esse tipo de exasperação, imaginando o pior: a mulher dele ficou sabendo da viagem! Foram descobertos. E ainda: ele mandou por e-mail, sem querer, as fotos que acabara de fazer dela – após terem transado – na contraluz do belo entardecer que fazia lá fora. Quando Anna ia tomar uma ducha, era o que ele fazia, passar para o computador as fotos. Esse hábito é comum, pois eles nunca deixam na câmera essas provas, e por todo esse tempo. Ele ama fotografar, mesmo que seja apenas um hobby, e ela ama ser fotografada, mesmo que tente disfarçar a sua genuína timidez e que não saiba bem como se comportar com o seu corpo e tudo o mais. Atriz que é, dotada de um grande talento para ser mais bela, mais forte, mais inteligente, mais qualquer coisa, contanto que num outro papel que não o seu, sente-se desajeitada e tola quando está ao lado de quem tão bem a conhece.
Como é o caso dele, já que estão há nove anos nesse “relacionamento clandestino”, termo que não suporta, mas que reconhece que é o cabível. E, exatamente pela clandestinidade da relação, a coisa mais horrível que poderia acontecer, depois de muitos anos temendo esse desfecho, seria
ser descoberta pela família dele. Muito mais pelo temor de causar qualquer mal-estar para pessoas que pouco conhece do que pelo flagra moral que sofreria. Por isso, o “algo horrível” que ele anunciou foi imediatamente interpretado como: “Ele mandou, sem querer, as minhas fotos para a mulher.” Sentiu-se imunda. Mas antes que ela falasse algo, ele se pronunciou:
— Eu mexi no seu celular! – as palavras de pânico não deixaram dúvida, ele tinha lido as mensagens trocadas com outro, um com quem havia terminado havia pouco.
Mas com quem ainda trocava algumas mensagens, pois o tal outro insistia em dizer que ainda a amava. Mesmo assim, flagrada, sentiu-se aliviada.
— Meu Deus! Que susto! Pensei que tivessem nos descoberto! Sei lá… Sua mulher, seus filhos. – Tirou a touca e se enrolou na toalha.
— Você foi descoberta! Como teve coragem? Você trocou mensagens com ele no aeroporto, antes de vir para cá! Como você pôde ser tão fria? Eu sempre soube! – Descontrolado, mas intuitivo, rapidamente começou a fazer ligações entre fatos. Sinapses tão ágeis que só uma pessoa traída consegue fazer.
— Calma. Eu… – Sentiu vergonha de dizer o resto. – Eu posso explicar!
— Explicar?
— Eu não tenho mais nada com ele… Eu… Eu te amo.
Anna o abraça, ele a empurra. Então o pior realmente acontece: ele começa a chorar. Senta-se na beira da cama desfeita pelo sexo, vestido apenas com uma cueca larga e íntima, e começa a chorar. Um choro da intensidade de uma tempestade depois de uma longa seca, daquelas chuvas barulhentas que fazem todos comentarem: “O mundo agora acaba!” Nunca André havia chorado dessa forma diante de Anna; ela já o tinha visto, quando muito, lacrimejar. E acha estranha a maneira como ele chora, sente uma certa vontade de bater nele; ele produz uns ruídos que fazem com que ela tenha ímpetos agressivos, suicidas. Sim, ela poderia se tacar da janela, se não tivesse plena certeza de que não morreria, talvez ficasse meio estropiada. E agora isso seria menos tenebroso do que ver André nesse estado.
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