Literatura brasileira, Trechos,

Contos unidos pela água

Em ‘Condições ideais de navegação para iniciantes’, Natalia Borges Polesso retorna ao gênero literário que lhe rendeu o Prêmio Jabuti

16set2024
(Renato Parada/Divulgação)

A coletânea de contos Condições ideais de navegação para iniciantes, da escritora, pesquisadora e tradutora gaúcha Natalia Borges Polesso, chega às livrarias nesta terça-feira (17), pela Companhia das Letras.  O livro marca o retorno da autora ao gênero literário que lhe rendeu um Prêmio Jabuti, há quase uma década, por Amora (Dublinense, 2016). 

Apresentando pessoas neurodivergentes ou LGBTQIA+, Polesso narra relações, questões e sensibilidades que refletem o mundo contemporâneo por meio de narrativas curtas unidas pela água — da solidez das geleiras até a liquidez do mar e da chuva.

No conto “Daphne ou o primeiro não”, por exemplo, a narradora costura, por meio da água da chuva, o diálogo entre mãe e filha, uma em um período de descobertas adolescentes, a outra em uma relação conturbada com o marido e lidando com suas frustrações.

Polesso também é autora de Foi um péssimo dia (Dublinense, 2023), A extinção das abelhas (Companhia das Letras, 2021) e Corpos secos (Alfaguara, 2020). Leia um trecho de seu lançamento.

Trecho de Condições ideais de navegação para iniciantes

Num dia turbulento de julho do ano de 1989, a mãe de Daphne segurou‑a pelos ombros e disse:

— Minha filha, nunca dependa de homem nenhum. Nunca dependa de ninguém.

Os olhos da menina escureceram com a sombra que a mãe projetava sobre ela. Sua figura desgrenhada, na boca um esgar, a expressão de certeza e dúvida ao mesmo tempo impressionaram a menina. Ela então não poderia contar com ninguém? Um terror: a mãe tinha medo.

Chovia. 

A mãe acomodou a mochila enorme nas costas da menina, botou sua própria capa de chuva em cima da filha e da mochila, pegou a mãozinha por baixo dessa corcova plástica amarela e saiu caminhando sem guarda‑chuva. A água ia pela canela naquela rua em que o saneamento não era lá essas coisas. Sapatinho ensopado, a menina sentia os dedos e o coração murchos.

Atravessaram a calçada para andar debaixo das marquises dos prédios. Ali as pessoas fumavam preocupadas, falando da economia do país. A mãe de Daphne pensou que poderia ser ela própria ali fumando e dando algum pitaco na economia, falando sobre o dólar e o overnight, segurando sua bolsa, escolhendo o restaurante em que mais tarde jantaria, mas tinha largado a faculdade por alguma razão que agora parecia não fazer sentido, e seus empregos atuais eram mãe e do lar.

O monte amarelo ambulante vinha de arrasto. Pegaram uma rua lateral. Chovia muito. Por que foram ter uma filha naquela idade? Tudo estava bom. Agora ficava horrorizada ao pensar que quando Daphne fizesse dezoito anos ela teria cinquenta e oito e ele sessenta e oito.

Chegar aos cinquenta e aos sessenta já era um desafio suficientemente doloroso, mas com uma filha pequena o calvário era maior. E naquela chuva… O pai esquecera as duas. Mais uma vez. A mãe de Daphne chegou à escola esbaforida, a professora com cara de quem tinha mais o que fazer do que aturar atraso de pais irresponsáveis. E não estava errada. Se chovesse, era o pai que buscava, de carro. Se não chovesse, era a mãe, e poderiam ir para casa andando.

Quando deu certa hora, ela soube que o homem não tinha cumprido sua parte. Ao sair de casa, quando abriu o guarda‑chuva ele se desmanchou, o tecido se rasgou todinho e o esqueleto de varetas ficou em pé, meio torto, rindo dela como uma aranha tosca. A mãe de Daphne jogou a tralha no chão e foi andando na chuva.

Chovia grosso.

Quando estavam próximas de casa, a mãe de Daphne parou num orelhão e ligou para o escritório da empresa onde o marido trabalhava. Uma voz grave: Pronto? Ela desligou. Só queria confirmar. Chegaram em casa. Daphne foi tomar banho. A mãe de Daphne não. Tirou o sapatinho e as roupas molhadas na cozinha, enfiou as roupas na máquina de lavar, enrolou uma toalha no cabelo e vestiu um robe. Ligou a televisão e viu as notícias sobre um novo plano econômico, mais um, e a imagem do guarda‑chuva se desmanchando voltou à sua cabeça.