Literatura, Trechos,
Claire Keegan desvenda segredos de um convento para mulheres
Finalista do Booker Prize e na lista dos cem melhores livros do século 21, ‘Pequenas coisas como estas’ reflete sobre o poder do silêncio e as influências da Igreja católica; leia trecho
02set2024O romance Pequenas coisas como estas, de Claire Keegan, chegou ao Brasil na última semana pela Relicário, com tradução de Adriana Lisboa. Vencedor do Prêmio Orwell na categoria de Ficção Política e finalista do Booker Prize em 2022, é o primeiro livro da escritora irlandesa a ganhar tradução no país.
Em 128 páginas, Keegan ambienta o leitor em uma pequena cidade na Irlanda em 1985, quando um comerciante de carvão é confrontado por uma descoberta que envolve um convento e as jovens mulheres ali abrigadas. A revelação o leva ao passado e aos silêncios de um povoado controlado pela Igreja católica. O romance foi listado entre os cem melhores livros do século 21 pelo jornal The New York Times.
A autora cresceu em uma fazenda na Irlanda e estudou nos Estados Unidos. Ela é conhecida por explorar, em seus romances, temas como a solidão, a vida rural e as complexidades humanas e a coragem para agir diante de injustiças. Leia um trecho a seguir.
Trecho de ‘Pequenas coisas como estas’
Em outubro, havia árvores amarelas. Então os relógios recuaram uma hora e os longos ventos de novembro chegaram e sopraram, desnudando as árvores. Na cidade de New Ross, chaminés expeliam uma fumaça que ia se dissolvendo e se espalhando em fiapos peludos e compridos antes de se dispersar ao longo dos embarcadouros, e logo o rio Barrow, escuro feito cerveja preta, engrossou com a chuva.
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As pessoas, em sua maioria, suportavam o tempo com tristeza: lojistas e comerciantes, homens e mulheres nos correios e na fila do desemprego, na mercearia, no café e no supermercado, no salão de bingo, nos bares e nos restaurantes baratos onde se vendia peixe com batatas fritas, todos comentavam, à sua maneira, o frio e a chuva que tinha caído, perguntando o que havia naquilo – e se poderia haver algo naquilo –, pois quem acreditaria que ali estava, mais uma vez, outro dia de frio intenso?
As crianças puxavam os capuzes para cima antes de ir para a escola, enquanto suas mães, tão acostumadas a abaixar a cabeça e correr até o varal, ou quase sem ousar pendurar o que fosse, não tinham muita fé em conseguir secar nem mesmo uma camisa antes de escurecer. E então as noites chegavam e as geadas voltavam a cair, e lâminas de frio deslizavam por baixo das portas e cortavam os joelhos daqueles que ainda se ajoelhavam para rezar o rosário.
No pátio, Bill Furlong, o comerciante de carvão e madeira, esfregou as mãos, dizendo que, se as coisas continuassem como estavam, logo precisariam de um novo conjunto de pneus para o caminhão.
– O caminhão pega a estrada o dia inteiro – ele disse a seus homens. – Logo a gente vai acabar no aro.
E era verdade: mal um cliente saía do pátio, outro logo chegava, sem dar descanso, ou o telefone tocava – e quase todo mundo dizia querer a entrega agora ou logo, na próxima semana não daria.
Furlong vendia carvão, turfa, antracito, pó de carvão e toras. As encomendas eram de 100 quilos, meia centena ou tonelada completa, ou ainda a carga cheia do caminhão. Ele também vendia fardos de briquetes, gravetos e gás em botijão. O carvão era o trabalho mais difícil; ele devia, no inverno, ser recolhido mensalmente no cais. Dois dias inteiros – era o que os homens levavam para coletar, carregar, selecionar e pesar tudo, de volta ao pátio. Enquanto isso, os barqueiros poloneses e russos eram uma novidade circulando pela cidade, com seus gorros de pele e longos casacos abotoados, sem falar praticamente nenhuma palavra em inglês.
Durante períodos de maior movimento como esses, Furlong fazia a maior parte das entregas sozinho, deixando aos empregados a tarefa de embalar os próximos pedidos e cortar e dividir as cargas de árvores derrubadas que os fazendeiros traziam. Pela manhã, as serras e pás podiam ser ouvidas trabalhando duro, mas quando o sino do Ângelus tocava, ao meio-dia, os homens largavam suas ferramentas, lavavam a sujeira das mãos e iam até o Kehoe’s, onde lhes serviam refeições quentes com sopa e, às sextas-feiras, peixe com batatas fritas.
– Saco vazio não para em pé – a sra. Kehoe gostava de dizer, postada atrás de seu novo balcão, fatiando a carne e servindo os legumes e o purê com suas compridas colheres de metal.
Os homens sentavam-se alegremente para descongelar os ossos e comer antes de fumar e enfrentar o frio lá fora outra vez.
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