O ensaio autobiográfico da escritora e jornalista canadense Naomi Klein Doppelgänger: uma viagem através do Mundo-Espelho, publicada no Brasil pela Carambaia, chega às livrarias nesta segunda-feira (23). A tradução é do professor Renato Marques e o volume conta ainda com posfácio do filósofo Rodrigo Nunes.
Vencedor do Women’s Prize 2024 na categoria não ficção, o título recorre à palavra alemã “Doppelgänger” (duplo ambulante, em português), que se refere à ideia de que todas as pessoas teriam uma cópia, espectral ou física, andando pelo mundo.
Durante a pandemia, a colunista do The Guardian e professora de justiça climática na University of British Columbia foi confundida com uma negacionista e ativista antivacina. “A outra Naomi”, como a autora se refere a sua sósia, é responsável por circular teorias conspiratórias e tornou-se nos últimos anos interlocutora da extrema direita.
Partindo de um paralelo com Alice através do espelho, de Lewis Carroll, Klein se debruça sobre a “cultura doppelgänger”, o submundo da desinformação e a rede de teorias da conspiração difundida na internet, que leva pessoas ao fanatismo, à violência e à polarização. Leia um trecho a seguir.
Trecho de Doppelgänger: uma viagem através do Mundo-Espelho
Na primeira vez em que isso aconteceu eu estava na cabine de um banheiro público nos arredores de Wall Street, em Manhattan. Prestes a abrir a porta, ouvi duas mulheres falando de mim.
“Você viu o que a Naomi Klein disse?”
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Congelei, pré-humilhada, e num súbito estalo me vieram à lembrança todas as meninas malvadas dos meus tempos de ensino médio. O que eu havia dito?
“Alguma coisa sobre como a marcha de hoje é uma péssima ideia.”
“E quem perguntou a ela? Na verdade, eu acho que ela não entende as nossas demandas.”
Espere aí. Eu não havia dito nada a respeito da marcha e nem uma palavra sobre as demandas. Aí me dei conta: eu sabia quem tinha feito isso. Fui tranquilamente até a pia, pelo espelho fiz contato visual com uma das mulheres e disse palavras que repetiria muitas vezes nos meses e anos seguintes.
“Acho que vocês estão falando da Naomi Wolf.”
Isso foi em novembro de 2011, no auge do Occupy Wall Street (OWS), o movimento em que grupos de jovens acamparam em parques e praças públicas em cidades dos Estados Unidos, do Canadá, da Ásia e do Reino Unido. Inspirado na Primavera Árabe e nas ocupações de praças encabeçadas por jovens no sul da Europa, o protesto foi um grito coletivo contra a desigualdade econômica e os crimes financeiros e que, ao fim e ao cabo, daria origem a uma nova política geracional. Naquele dia, os organizadores do acampamento original de Manhattan convocaram uma marcha em massa pelo distrito financeiro, e, a julgar por todas as roupas pretas e o pesado delineador líquido, dava para perceber que ninguém naquele banheiro público estava só num intervalo das atividades de trading de derivativos.
Eu entendia por que alguns de meus colegas manifestantes confundiam as Naomis. Nós duas escrevemos livros de grandes ideias (o meu Sem logo, O mito da beleza dela; o meu A doutrina do choque, O fim da América dela; o meu Tudo pode mudar, o Vagina: Uma biografia dela). Nós duas temos cabelos castanhos que vez por outra ficam aloirados por causa do excesso de luzes (os dela são mais compridos e volumosos que os meus). Somos ambas judias. O mais confuso é que, até certo momento, nossa escrita percorreu estradas claramente distintas (os temas sobre os quais ela se debruçava eram o corpo e a sexualidade femininos e as mulheres em papéis de liderança; já a minha obra se voltou para os ataques corporativos à democracia e para as mudanças climáticas). Porém, quando o Occupy aconteceu, a até então nítida linha amarela que dividia essas pistas começou a se transformar num oscilante borrão.
Por ocasião do incidente no banheiro público, eu já havia visitado a praça Occupy um par de vezes. Estive lá sobretudo a fim de realizar entrevistas sobre a relação entre a lógica do mercado e o colapso climático para o que viria a ser o livro Tudo pode mudar: Capitalismo vs. clima. Porém, enquanto lá estive, os organizadores me pediram que fizesse uma breve palestra sobre o choque da crise financeira de 2008 e as violentas injustiças que se seguiram – os trilhões de dólares arregimentados para salvar os bancos cujas inconsequentes operações e transações causaram a crise; a austeridade punitiva imposta a praticamente todo o restante da população mundial; a corrupção legalizada que tudo isso desmascarou. Essas foram as sementes de descontentamento das quais os populistas de direita em dezenas de países acabariam por tirar
proveito para fomentar um projeto político ferozmente anti-imigração e anti-“globalista”, incluindo Donald Trump, sob a tutela do seu principal conselheiro, Stephen K. “Steve” Bannon.