Recém-lançado pela Bazar do Tempo, o romance autobiográfico No muro da nossa casa, da escritora e professora de literatura Ana Kiffer, narra as vozes de uma mãe e uma filha que buscam reescrever a história da família acusada de comunismo durante a ditadura no Brasil.
No final dos anos 1960, Cléia é presa em casa, em Niterói, no Rio de Janeiro, por militares que estão à procura de seu marido. Ela tem dois filhos pequenos e está grávida de Ana. Décadas depois, a história ressurge na família e a filha, agora adulta, tenta juntar o quebra-cabeça atrás da verdade.
Misturando lembranças, diálogos e ficção, a autora finalista do prêmio São Paulo de Literatura por O canto dela (Patuá, 2022) tece as aflições, lições e consequências que permaneceram mesmo após o fim da ditadura a partir do encontro com sua mãe. Leia um trecho a seguir.
Trecho de No muro da nossa casa
Enquanto escrevo também, mãe.
O que nunca ouvi nem vi me assombra. O que você nunca me disse também. Escrever se tornou o ar que respiro pela falta de palavras, escrever é respirar. As palavras fogem, respiro. Se apagam, também respiro. Quando pousam, já logo me desgarro, e tento ver o muro, como num filme, a passagem da letra é como a passagem do tempo.
Escrevo também sobre o seu mutismo. Escrevo porque nunca realmente pude conhecer você. Porque nunca conhecemos os nossos pais. Você também não conheceu a sua mãe. Porque como as palavras, as mães sempre nos escapam. Porque diante delas somos crianças, envoltas em mistérios, cabanas, panos, trapos, esponjas e letras apagadas. Grafar como apagar. Apagar como grafar é escrever. Escrevo pela sua raiva também. E a minha, que essas coisas às vezes se herdam, como o amor pelas letras, o apagar, e o grafar. Talvez uma parte sua, outra de todos nós, tenha morrido quando as letras se apagaram.
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Parte desse país ainda vive morto. Matando. Escrevo em meio à sensação de um não ter língua, um algo apátrida me corrói. E essa língua, quando minha, me asfixia. Porque não lembro, porque não há memória, e porque nasci sem memória, escrevo.
As crianças sabem dizer de tudo o que acontece em torno delas. Quero encontrar a língua da menina, a língua do p de pato, de pai. Como viveram as crianças naquele tempo em que quase morreram. Toda letra é um pouco como um concreto armado, me confundo com o muro, com a sua barriga, para dissolver o duro, e inventar aquele jeito de dançar nas feiras públicas: a frase e o som do mundo que não ouvimos. Porque o muro se interpôs.
Em parte de mim ainda vive aquela criança que nasceu só porque sobreviveu. Tudo o que não ouvi está aqui. O que não vi também.
O que não se disse. O que não nos dissemos, mãe. Esse era o mundo depois de tudo. Sempre me senti como uma parte do depois de tudo. Sem geração, sem filiação, sem partido, sem grupo, sem grandes mestres. Parecia que tudo isso tinha acabado, e em parte tinha. Mas esse jeito de não pertencer a nada, que partilhava com alguns dos meus colegas, era uma coisa estranha. Como se tivéssemos herdado um sonho que não era nosso antes mesmo de termos podido começar a sonhar. Nascemos para a reconstrução. A redemocratização do Brasil. Era um sonho que fazia e não fazia sentido, porque de fato, o que vivemos? Ainda sequer sonhava, mas já era comunista. Era um pedacinho do antes. Que vivia ali entranhado, como dívida com os nossos pais, como carne hostil que foi batida antes da hora. Hoje já são muitos os tempos que me habitam, os seus sonhos também me habitam, com raiva ou alegria, um país mais justo, e justo um país. Pra chamar de seu. De meu, de nosso.