Fotografia de Maria Angélica Keller retratando seus familiares, entre eles a filha Tamara Keller, exilada na infância (Divulgação)

Biografia, Política, Trechos,

Infâncias capturadas pela ditadura

Em Crianças e exílio, mais de quarenta autores trazem as memórias de suas infâncias marcadas pela perseguição política do regime militar brasileiro

12maio2025

Brasileiros que, quando crianças, foram fichados pela ditadura militar e obrigados a deixar o país escrevem sobre esse passado na coletânea Crianças e exílio: memórias de infâncias marcadas pela ditadura militar, organizada pelas professoras Nadejda Marques e Helena Dória Lucas de Oliveira, que também viveram o exílio na infância.

O volume, publicado pela Carta Editora, reúne quarenta e seis testemunhos. Após acompanharem seus familiares sendo perseguidos, ameaçados ou assassinados pelo regime, os autores enfrentaram a perda da cidadania brasileira e a necessidade de se exilar ainda crianças. 

Escada de avião fotografada por Andiara Cobério Terena, uma dos autores da coletânea Crianças e exílio, no Museu da Memória, Chile, 2016 (Acervo pessoal)

Além de uma infância atravessada por medo, mortes e falta de respostas, os depoimentos relatam a perda de identidade causada pelo exílio. A ausência de nacionalidade e a desconexão com os familiares que permaneceram no Brasil se tornaria ainda mais evidente após o retorno dos exilados ao país, com a Lei da Anistia em 1979. 

Trecho de ‘Crianças e exílio: memórias de infância marcadas pela ditadura militar brasileira’:

La Edad de Oro, de José Martí, foi o primeiro livro que tive a consciência de que era meu. Foi um presente que me foi dado quando eu estava internada em um hospital infantil em Havana, Cuba. Na verdade, naquela ocasião eu ganhei dois livros com o mesmo título de duas pessoas diferentes. Um deles parecia ser mais antigo com as páginas amareladas e uma fita adesiva preta na espinha que também segurava a capa. A publicação era de 1972. O livro tinha a minha idade, logo, uma criança. Sua capa trazia uma ilustração ao estilo da Grécia Antiga muito bonita. O outro livro era mais compacto e parecia ser mais novo. A capa era brilhante com cores bem vivas. Naquela época, eu tinha 5, quase 6 anos e estava internada com uma infecção nos rins. Beber água nunca foi o meu forte. Não sei bem quem me presenteou os livros. Não me lembro se foi alguma enfermeira ou se foi alguma visita. Talvez amigos dos meus pais que foram me visitar no hospital. Fiquei muito encucada com aquela situação. Era muito especial receber presentes, ainda mais dois presentes iguais. Orgulhosa, antes mesmo de ler seu conteúdo, pensei que deveria ser um livro muito importante que se presenteia a crianças doentes para que elas melhorem.

Ainda no hospital, folheava os livros achando graça que pareciam idênticos. Comparava as gravuras, os números das páginas e os títulos dos contos. Pela minha idade, imagino que eu talvez ainda não soubesse ler. Talvez estivesse aprendendo. No livro mais velho, escrevi o meu nome no alto da capa e na página onde está o conto em verso que depois gostava de recitar de cor fiz uma pequena marca. O conto era Los zapaticos de rosa. 

Até hoje, o primeiro verso desse poema me transporta a outros tempos. Por todo o livro, há uma mensagem e até mesmo um clamor para que as crianças melhorem. Não no sentido que eu imaginava (se curar, sarar de alguma doença e sair do hospital) mas no sentido de se tornarem pessoas melhores. Pessoas que buscam e defendem os valores do conhecimento, do amor e da justiça. Segundo o livro, as crianças deveriam se inspirar em Bolívar, Hidalgo e San Martín. É uma mensagem revolucionária para crianças (mesmo que nele, anos mais tarde se perceba o evidente preconceito da época e o pensamento misógino e discriminatório contra as meninas). Pelas linhas de Martí, seríamos revolucionários! Aliás, não era uma missão só daquele livro. Por toda a parte, na escola, nas ruas, na TV, aprendíamos e queríamos ser revolucionários. Seríamos como El Che!

No poema, eu me via como a menina dona dos sapatinhos cor-de-rosa, a menina Pilar, que se sensibiliza com a desigualdade social e que quer ajudar ao próximo, com solidariedade, generosidade e desapego material. Eu, uma menina refugiada, doente, a quem tantos cuidavam e queriam bem, me sentia privilegiada, me sentia no dever de ajudar àqueles que não estavam tão bem. Em Cuba, meus olhos de criança não viam desigualdade social, mas eu sabia que no Brasil sim existia muita pobreza. Sabia que meus pais passaram dificuldades na infância. Minha mãe, Tércia Maria Rodrigues Mendes, contava que no Brasil, minha avó, às vezes, deixava de comer para dar de comer aos filhos. Em um dos seus trabalhos como encarregada da limpeza de uma escola, minha avó juntava os toquinhos de lápis descartados para dar aos filhos para que eles pudessem escrever. Meu pai, Jarbas Pereira Marques, com outros pais, lutavam por um Brasil  mais justo para todos. Mas foram perseguidos. Presos. Torturados. Mortos.

Nadejda Marques