
A cobertura especial d’A Feira do Livro, que acontece de 14 a 22 de junho, é apresentada pelo Ministério da Cultura e pela Petrobras
MINISTÉRIO DA CULTURA E PETROBRAS APRESENTAM

A FEIRA DO LIVRO 2025, Literatura brasileira,
Um milhão de ruas — e três crônicas de Fabrício Corsaletti
Leia textos inéditos do poeta e cronista paulista incluídos em seu novo livro, Um milhão de ruas
02jun2025A coletânea Um milhão de ruas: crônicas 2010 – 2025 (Editora 34), de Fabrício Corsaletti, um dos convidados d’A Feira do Livro 2025, chega às livrarias reunindo dois livros de crônicas anteriormente publicados pelo autor, Ela me dá capim e eu zurro (2014) e Perambule (2018), acrescidos do inédito Bar Mastroianni. A seguir, leia três crônicas inéditas incluídas na coletânea, intituladas “31”, “67” e “47”.
31
Ele voou de bicicleta, à altura de um poste, ao longo de trinta ou quarenta metros. Não sei quanto tempo durou, mas disseram que uma eternidade. Um dia desses, no bar do Serginho, mais de vinte anos depois, soube que ele fez o que fez pra impressionar uma menina, a Gil. Faz sentido, já que eles botaram a rampa de skate bem na frente do casarão onde ela morava. Quebrou várias costelas e ficou seis meses de cama, com gesso nas pernas e nos braços — pontos na cabeça, curativo no queixo, inchaço no nariz. Durante o resto do ano os moleques contavam tudo em detalhes: a lenta subida até a igreja, empurrando a bicicleta; os minutos imóvel, de mãos nos freios, hesitante; o sinal da cruz antes da partida; a descida alucinada, pedalando com força; o grito primitivo de vitória no instante em que o pneu tocou o half de madeirite (que a gente guardava no quintal do Lelê); a expressão de pavor que dominou o rosto do Cadelinha quando ele chegou lá no alto e planou, feito um herói, num arco mágico (que apenas imaginei mas nunca esqueci); a queda no asfalto coberto pela areia de uma construção vizinha; o corpo do Cadelinha caindo no chão num baque horrível e rolando pela rua; o silêncio que pesou sobre os meninos; o Lelê correndo e ligando pro pai, que era médico e surgiu de dentro da ambulância e então todo mundo chorou; a bicicleta fodida resgatada só muito mais tarde do meio do mato do terreno baldio do Valentim. O Frango pede pro Serginho uma porção de dobradinha. O Lelê enche os copos de cerveja. Alguém começa a gargalhar.
67

Seu pai biológico é Hemingway, mas Tchekhov foi quem a criou. Carver é o irmão deprimido. Clareza, precisão, frases simples e verdadeiras (Hemingway). Um coração generoso, isto é, desiludido, que não abre mão da liberdade nem do amor (Tchekhov). No mais, tudo é imprevisível. Trágica e divertida. Quase malandra. A beleza é inegociável, a dor é inegociável, o humor é inegociável e a aventura não tem fim. A linguagem às vezes se adensa pra fixar certas cores. De um período pro outro, a psicologia pode torcer o pé. A poesia está em toda parte, inclusive nos livros de poesia (Borges). Poesia é o que sobra dos seus melhores contos, depois que a memória apaga a trama. Destruída, mas nunca derrotada. Remendada numa varanda do Texas. Linda como uma ruína em cada uma das etapas de sua arruinação. Vermelho-méxico. Almodóvar beatnik, com e sem bolero. “Por que me casei com esses homens calados, se o que mais amo na vida é conversar?”, suas personagens se perguntam o tempo todo. Um dia se perde no Louvre, feito um isqueiro no universo. Somos pequenos, sim, mas nosso desejo nos excede, e o mar de Zihuatanejo é verde-esmeralda de manhã. Sejamos adultos: os primeiros! Magnânimos e sensuais. Com exceção do horror e da avareza, tudo é belo neste mundo. Seu cabelo tem cheiro de lenha queimada.
47
Uma mulher canta os números com nostalgia de aeroporto. A água das cervejas tiradas do balde pinga sobre as cartelas incompletas. A batata frita é ótima. O pastel mais ou menos. Um uísque é um uísque é um uísque, mesmo nos universos paralelos. Do meu lado esquerdo Pitonisa de Óculos marca com X. Do meu lado direito Shelley Rediviva marca com círculos. Mas nenhum de nós — aqui sou o Querubim da Guerra — consegue fazer uma linha e gritar LÊÊÊNHA. Diambeira Amuada se cansa depressa — seu rosto toscano é uma estátua no exílio. Skatista da Roça e Charreteira Plácida riem alto. O garçom pede silêncio. Pagamos a conta e saímos — não sem antes espiar o baile da terceira idade, debruçados no corrimão da escada. De volta ao amarelo das calçadas, o pintor Queijos Finos sugere uma saideira, mas como o Champanhe no Gelo está fechado, Moranguete Três Meias conduz a tropa pro Dores da Alvorada. É primavera e meu sofrimento neste mundo terminou. Que os anos passem lentamente. Que haja outras rodas engraçadas como esta. Que nossos poemas sejam como as pedras que Aladim colheu num pomar subterrâneo e não como a lâmpada que lhe deu tudo menos um sábado à noite no bingo do Clube Piratininga.
Nota do editor: Em Um milhão de ruas, o poeta e escritor paulista Fabrício Corsaletti reúne quase duzentos textos (crônicas, contos, poemas e anotações) publicados nos últimos quinze anos nos livros Ela me dá capim e eu zurro (2014), Perambule (2018) e o inédito Bar Mastroianni. A Quatro Cinco Um reproduz aqui três crônicas inéditas incluídas no volume, publicado pela Editora 34.
A Feira do Livro 2025 · 14 — 22 jun. Praça Charles Miller, Pacaembu
A Feira do Livro é uma realização do Ministério da Cultura, por meio da Lei Rouanet – Incentivo a Projetos Culturais, Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos dedicada à difusão do livro e da leitura no Brasil, Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais, e em parceria com a Prefeitura de São Paulo.
Porque você leu A FEIRA DO LIVRO 2025 | Literatura brasileira
Gol de craque
Ugo Giorgetti dribla lugares-comuns em coletânea de crônicas e contos sobre tipos inesquecíveis que constituem sua visão épica do futebol
MAIO, 2025