Ilustração de Natália Gregorini (Divulgação)

Literatura, Rebentos,

Trem das cores

Narrado por um comboio, livro combina recursos visuais e de texto para reproduzir o ir e vir dos passageiros e o ritmo das viagens

10dez2024

Um comboio de recursos de tempo e cruzamentos de narrativas. Como uma locomotiva, O trem dos sonhos, de Marcelo Maluf e Natália Gregorini, tem sua força no ritmo. Uma página é bem rápida, como a paisagem passando pela janela — voa fumaça, corre cerca —, outra sugere um tempo mais lento, como durante a espera para entrar num vagão. Esses tempos são construídos por uma combinação de recursos visuais e de texto.

A narrativa verbal segue o trilho. Apresenta o narrador, o trem, logo de cara. Descreve, aprofunda. A cada parada, uma nova camada, poética e linear. O ritmo do texto e o movimento da imagem criam muitos tempos. Quanto tempo se passa numa página dupla cheia de tirinhas e quanto tempo se passa numa dupla com uma única imagem?

A narrativa visual se sustenta no trilho, mas seu movimento reproduz o ir e vir dos passageiros. Consegue imaginar? Enquanto o trem segue em linha reta, na vertical, as pessoas entram e saem num movimento rápido horizontal e perpendicular ao trilho. Tomando um pouco de distância, fica mais fácil de encontrar esse desenho. As pessoas entrando e saindo na horizontal, e o trem seguindo na vertical. Viu? Um não existe sem o outro. Como uma respiração. Uma hora o ar sai, outra hora o ar entra.

No caminho para o trabalho, Marcelo Maluf, autor da narrativa textual, sempre observou as pessoas que iam e vinham no trem. Natália Gregorini, autora das imagens, criou micronarrativas que seguem o trilho do texto. Personagens ganham vida no tempo suspenso entre uma estação e outra. Dormem, leem, conversam, respondem mensagens, arrumam o cabelo no reflexo do vidro, pensam em tudo que ainda falta fazer ou em nada.

Mas quem sabe quem eles são, para onde vão, como eles estão? É o leitor que cruza estes mundos: o real, concreto, bem ali, com o imaginário, abstrato. Corpos, expressões, roupas, posturas, encontram o repertório de cada leitor. O cotidiano de quem lê preenche as lacunas que dão vida a outras narrativas conduzidas visualmente por Natália, que segue o trilho da narrativa de Marcelo. Muitos caminhos se cruzam na leitura desse livro.

Operadores de máquinas

Editores de texto e de arte, autores de texto e de imagens, tradutores, revisores, preparadores: muita gente trabalha para colocar esse trem no trilho. Desatam nós, remontam rotas, resolvem. O tempo de cada etapa varia muito.

O trem dos sonhos levou um ano pra ficar pronto. Marcelo entrou em contato com os editores, que procuraram Natália. (Neste caso foi assim, mas nem sempre o processo é nessa ordem.) Segundo Natália, o prazo curto para entrega das imagens fez que o processo criativo fosse mais objetivo. Ela precisou ser certeira nas escolhas de técnica, cores e processos. 

Tinta guache, pastel e lápis de cor deram corpo às imagens. E algumas possibilidades de experimentação foram aparecendo e encontrando espaço no trem dos sonhos, como fazer o contorno dos rostos dos personagens — contorno no nariz, olho, boca com preto — sem usar tanto volume, ou misturar técnicas de tintas em cima do lápis de cor.

Personagens ganham vida em um tempo suspenso entre uma estação a outra. Dormem, leem, conversam

De repente uma cor que ficaria de fundo, salta. Um cinza que era para ser uma sombra, somado à sobreposição do amarelo que seria usado para ser a luz de uma cena, se destaca. Não era o planejado com aquelas cores, e estas surpresas acabaram guiando o processo de alguma maneira.

Essa influência do processo e dos materiais é uma característica forte do trabalho de Natália. Formada em artes visuais pela Universidade de Campinas, também estudou ilustração e técnicas de impressão na Universidade do Porto, em Portugal. É ainda autora de Madalena, publicado pela Livros da Matriz e finalista do Jabuti de 2020 na categoria Ilustração, resultado de seu projeto de mestrado no Instituto de Artes da Unicamp.

“O texto de Marcelo veio cheio de possibilidades que eu poderia experimentar com a narrativa visual. Me senti muito livre e vi pequenas dicas de caminhos para onde ir”, conta a ilustradora. “O trem, que é o narrador, vai comentando. Usei o olhar do trem para encontrar as personagens.”

Com o livro nas mãos, essa liberdade que Natália descreve fica clara. E saber do processo enriquece a leitura de O trem dos sonhos. É claro que nunca vai dar pra saber tudo que foi planejado e descartado no caminho, mas descobrir um pouco da execução criativa de uma autora visual ajuda a refinar nosso olhar na leitura.

Quem escreveu esse texto

Rita da Costa Aguiar

É designer gráfica e editora de arte de livros infantis e juvenis.

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