‘Chupim’ e o direito de sonhar

Literatura, Literatura infantojuvenil, Rebentos,

‘Chupim’ e o direito de sonhar

Estreia de Itamar Vieira Junior na literatura infantil lembra que pessoas em situação de crise seguem sonhando

01out2024 | Edição #86 out
Ilustrações de Manuela Navas (Divulgação)

Um pássaro que sobrevoa Torto arado, best-seller do baiano Itamar Vieira Junior, ganha agora uma história solo, ilustrada com pinturas da paulista Manuela Navas. Chupim é um livro para as infâncias, primeira publicação do autor no gênero, que chega ao mundo em um momento necessário.

Nunca se falou tanto sobre a exaustão do planeta e crises ambientais nas casas, escolas, redes sociais e jornais. Nessa devastação, é válido nos perguntarmos: o que pode a literatura diante o fim do mundo? Uma resposta imediata é: pode alargar nosso olhar para a natureza. E essa movimentação, diferente de produzir um escapismo superficial da realidade, produz um reequilíbrio das nossas percepções, gerando mundos possíveis.

Nessa perspectiva, Chupim chega em boa hora, pois frente aos colapsos socioambientais é urgente ampliar o diálogo com as crianças sobre temas sensíveis, como questões agrárias, trabalho infantil, devastação do meio ambiente e racismo. E a leitura literária, insisto, é um caminho sensato para iniciarmos esses debates.

Chupim conta a história de um menino que é levado pelo pai para trabalhar numa plantação de arroz, espantando pássaros. Ao longo da narrativa, vamos aproximando a vida da ave à vida do personagem Julim, como se um servisse de elemento metafórico para o entendimento da existência social do outro. Flanando pelas imagens de Manuela Navas, vamos desejando a existência de um mundo de fantasia para a criança, como ele vai desejando o mesmo para o passarinho.

As pinturas de Manuela Navas saltam das páginas, como se pudéssemos olhar para o céu e ver os pássaros

O livro acende nosso olhar, ampliando nosso imaginário sobre o cotidiano de crianças em situação de vulnerabilidade, sem que em qualquer passagem do enredo esse problema seja apresentado como romantização da miséria. Oposto a isso, o autor apresenta um texto cuidadoso, não simplificando a temática do trabalho infantil, mas deixando pistas para que uma criança leitora crie reflexões sobre a questão. A narrativa explora essa margem entre a realidade social — vivida com lucidez e exaustão pelos adultos, e a fantasia que vivem as crianças.

“Menino, menino” a voz do pai chamou pela casa antes do sol nascer.
Era um convite para o despertar.

Um convite para qual despertar? A pergunta ficará ao longo do texto como um anseio, não o de que o pai desperte o filho, mas de que o filho desperte o pai para uma nova possibilidade de imaginar. Chupim complexifica o personagem menino negro e pobre ao nos apresentar um ser que estabelece uma relação saudável com a natureza.

Infelizmente, nem sempre personagens negras foram apresentadas com profundidade na literatura brasileira. Por isso o livro é ainda mais significativo nesse conjunto: questões abordadas e seleção digna de imagens. É também bem-vinda a presença bem elaborada de temas socioambientais na infância. As pinturas de Manuela Navas saltam das páginas, em sobrevoos. É como se pudéssemos, ao longo da leitura, olhar para o céu e ver os chupins. Ou como se notássemos a presença de Julim ao nosso lado.

Nesse conjunto, texto e ilustrações, Chupim cumpre a função literária mais bela, que é nos iludir, nos embalar em horinhas de sossego. Dá conta ainda de uma nobre função da literatura: nos educar para um mundo mais digno. E realiza essa função: a) apresentando enredo e personagens densos e b) revelando que pessoas em situação de crise, principalmente crianças, seguem sonhando.

Direitos

Crianças devem ter direito à literatura, devem ter acesso a livros e a ambientes de leitura. Cada adulto, em sua rede familiar, deveria ter como prioridade proporcionar esses ambientes ou acessos a lugares que ofereçam essa estrutura aos pequenos. Uma sociedade organizada para o bem comum deve ter políticas públicas voltadas para a construção e manutenção de uma audiência de crianças leitoras. O investimento, público ou privado, nesses cenários é uma amostra de como a literatura pode dialogar com os colapsos da sociedade.

Chupim nos ensina sobre o sonho. Ou melhor, sobre o direito de sonhar. Itamar Vieira Junior segue a linha estética que vêm elaborando em seus outros títulos, como Torto arado e Salvar o fogo: desenvolver uma linguagem que apresenta personagens e cenários brasileiros com dignidade e complexidade, mesmo que confrontando vivências traumáticas.

Quem escreveu esse texto

Luciany Aparecida

É autora de Mata doce (Alfaguara).

Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024. Com o título “‘Chupim’ e o direito de sonhar”

Para ler este texto, é preciso assinar a Quatro Cinco Um

Chegou a hora de
fazer a sua assinatura

Escolha como você quer ler a Quatro Cinco Um.

Faça uma assinatura anual com até 56% de desconto e ganhe uma ecobag exclusiva!

Entre para a nossa comunidade de leitores e contribua com o jornalismo independente de livros.