Política,

O preço da passagem

Quatro anos depois dos protestos de junho de 2013, altos custos da democracia brasileira persistem e podem ser novamente cobrados em 2018

08nov2018 | Edição #2 jun.2017

Junho de 2013 pode ficar, para a primeira metade do século 21 brasileiro, como 1968 ficou para a segunda metade do século passado. Deflagrados pela juventude, ambos foram movimentos pela democracia. Em 1968, pelo acréscimo de um mínimo de democracia ao consórcio civil-militar no poder. Em 2013, pela ampliação do leque e superação franca do déficit democrático. Mas com diferenças de alto relevo.

Assumidamente de esquerda, 1968 foi brutalmente bloqueado pelas botas militares que pisaram com pé de lama no tapete da vida. Já 2013, política e ideologicamente muito menos marcado, se prolonga, repercute ainda. E vai repercutir ainda mais, quando suas principais discussões e reivindicações — da recusa do partidocratismo ao direito à cidade — forem retomadas. Mais do que 1968, 2013 está longe de ter acabado.

Temos quatro anos de atos e passeatas, de ruas variavelmente revoltas pelo país. E uma tremenda ironia da história. No primeiro mandato, atendendo reivindicação de movimentos sociais, Lula criou o Ministério das Cidades. Em seguida, mesmo com o país atravessando a maior crise urbana de sua história, não hesitou em rifá-lo, entregando-o ao grupo do folclórico deputado Severino Cavalcanti (PP-PE), em troca de apoio (votos no Congresso) durante o escândalo do mensalão. E Dilma não só jogou na lata do lixo “a grande reforma urbana nacional” prometida na campanha de 2010, como manteve o Ministério na bolsa das barganhas e no balcão da corrupção.

Adiante, e aí está a ironia, um movimento social autônomo, o Movimento Passe Livre (MPL), nascido da chamada Revolta do Buzu (Bahia, 2003), retomou a bandeira, centrado de saída no problema da mobilidade urbana em sua face mais crua — o preço da tarifa. Segundo o IBGE, cerca de 38% da população brasileira andam a pé, por não ter dinheiro para ônibus, trem nem metrô. E foi admirável ver jovens privilegiados irem às ruas em luta pelo direito de todos se moverem gratuitamente em nossos espaços urbanos.

Podemos então dizer que os protestos de 2013 nasceram das ruínas demasiado precoces do tão esperado e festejado Ministério das Cidades. Logo, de um tremendo fracasso do governo de Lula, que tivera na iniciativa sua primeira e única ação original em campo administrativo.

Junho de 2013 surpreendeu o sistema de poder. As manifestações exibiram uma rejeição do establishment e rasgaram a fantasia do  “país de todos” 

Infelizmente, esse período recentíssimo da vida brasileira, que se abriu em 2013 e não se encerrou no impeachment de Dilma, ainda não recebeu a leitura geral que merece. Os lançamentos de A forma bruta dos protestos: das manifestações de junho de 2013 à queda de Dilma Rousseff em 2016, de Eugênio Bucci, e A democracia impedida: o Brasil no século 21, de Wanderley Guilherme dos Santos, embora enriqueçam, não alteram o quadro. Sugerem capítulos de uma coletânea ainda não publicada.

Com Bucci concentrado em comunicação ou semiótica — e Wanderley produzindo obra mais engajada que reflexiva, apesar de suas dissertações eruditas. Em ambos os casos, a comunidade geral de leitores segue sem uma visão de conjunto do processo que continuamos a atravessar.

Para efeitos didáticos, podemos segmentá-lo em três lances. Primo: das “jornadas de junho” ao “estelionato eleitoral” de 2014. Secondo: do estelionato ao impeachment. Terzo: do “golpe parlamentar” aos dias que correm, rumo às eleições de 2018. Mas as narrativas dos dois autores descoincidem. Bucci sabe que tudo começou em 2013, Wanderley trata de tentar diminuir o ocorrido ali. E sua visão partidariamente comprometida toma conta do livro. Basta dizer que ele celebra a “belíssima campanha” do “não vai ter golpe”, ao mesmo tempo em que execra os “micróbios” — isto é, grupelhos supostamente parasitários do movimento de massa, caracterizáveis por sua “escala reduzida, elevado potencial destrutivo e completa impotência criadora”.

Mas temos de nos ater àquelas origens. Junho de 2013 surpreendeu o sistema de poder, em todas as suas facções. Lavas se moviam, sem que quase ninguém suspeitasse, sob a aparente placidez social. E as manifestações não só exibiram uma rejeição ostensiva do establishment político-partidário, como rasgaram a fantasia marqueteira lulopetista do “país de todos”. 

Momento de um rotundo não contra os donos do poder. Viram-se ali, como primeiros móveis do protesto, o sentimento de exclusão política, a demanda por serviços públicos de qualidade e a recusa da corrupção, até que o movimento virasse “contra tudo”, da cobrança de pedágio aos gastos com a Copa do Mundo.

O tópico da exclusão política (e seus correspondentes desejos de mecanismos de democracia direta), atingindo em cheio as novas gerações, foi nota nítida — exclusão até mesmo do “populismo tecnocrático” (a expressão é de Werneck Vianna) do PT, que, enquanto esteve no poder, cultivou um populismo palaciano ou de gabinete, estranha espécie de populismo sem massas. Era o capítulo brasileiro da crise representacional, do colapso do partidocratismo ou da recusa do quadro vigente das relações entre Estado e sociedade, que vinha à luz. 

É bom ressaltar que a base das manifestações não foi imediatamente econômica, até porque a população se dizia relativamente satisfeita com a economia, com a taxa de desemprego girando em torno de 5,8%. O que estava em jogo não era o “preço da passagem” (apesar da insistência do MPL), mas o altíssimo preço da subdemocracia. Entenda-se o preço da passagem, então, em sentido ritual ou metafórico: passagem para outra realidade democrática brasileira, que não se consumou.

Tara varguista 

Lembre-se, ainda, que o movimento se projetou no vazio deixado pela cooptação dos “movimentos sociais”. E aqui flagramos uma contradição petista. O partido nasceu defendendo a autonomia dos agentes sociais diante do Estado. Mas, uma vez no poder, cuidou de alargar ao extremo a tara varguista. Com isso, desmantelou a sociedade civil. No vácuo, as redes sociais dominaram a cena. Foi sua primeira intervenção significativa — assumindo intensidade prática — no horizonte político. E como o virtual é incapaz de substituir inteiramente o real, sobretudo no campo das ações e expressões políticas, o que de fato importou, como diria o David Harvey de Cidades rebeldes, foi o poder coletivo dos corpos no espaço público.

Bucci não nos faz conhecer melhor 2013. Preocupado com a estética da violência, secundariza o drama social e sua dimensão política

Bucci sabe disso, obviamente. Mas está mais interessado em semiologia do que nas realidades brasileiras. Embora seu livro seja claro, mesmo que vá da exposição jornalística ao ocultismo lacaniano, não se empenha numa leitura da situação nacional. Ficamos no plano do Norman O. Brown de Closing time: as formas da política são as formas do teatro. Mas não há novidade nisso: ao contrário de um Bucci, mais tradicional-humanista, aliás, Marinetti sequer via incompatibilidade entre criação estética e destruição tanática. 

Mas, se tudo é representação, como já sabiam os “provos” holandeses (1), o que aquela e não outra representação expressa? Bucci não diz. Não nos faz conhecer melhor 2013. Preocupado com a linguagem e a estética da violência, dá ressalte aos “black blocs”, secundarizando o drama social e sua dimensão política.

Wanderley acha melhor deixar para lá a corrosão da democracia promovida pelo PT ao vencer com um programa que não aplicaria

Tudo bem: o espaço público é um fórum, uma conferência semiótica em várias direções, onde algum tema está sempre em destaque ou debate. Mas isso vale tanto para a Plaza de Mayo quanto para a Praça Tahrir. Não fala da especificidade da movimentação brasileira. E está claro que nem tudo é signo. É interessante que Nabokov diga, em Lolita, que “realidade” é uma palavra que só deveria ser escrita entre aspas — mas a superbomba dos Estados Unidos, caindo sobre a Síria, retira de imediato essas aspas em meio às pessoas que feriu. Atores sociais são atores, mas sofrem danos reais — e específicos. Não vou discutir se o que veio antes foi o ovo do fato ou a galinha dos signos de ouro. Penso apenas que devemos olhar 2013 em seu significado próprio, como questão sobretudo social, e não principalmente semiótica.

O caso de Wanderley é outro. Ele está interessado em caracterizar o “golpe parlamentar” e atacar o “governo usurpador”. Autor de obra respeitada — e respeitável —, Wanderley tem a nossa admiração. Seu mérito maior, sublinhado por estudiosos, está em, ao lado do cultivo do rigor analítico em base quantitativista, ter alimentado elos entre a nova “ciência política” e a linhagem de pensamento que se expressara na melhor produção ensaística brasileira, que a “escola paulista” pretendeu ignorar, no seu afã de se afirmar como uma espécie qualquer de marco zero. Mas reconhecer a importância da obra passada está longe de significar concordância com a obra presente.

Não por acaso, Wanderley começa seu estudo com uma afirmação sintomática: “Este não é um livro de propaganda”. Bem, melhor recordar a Verneinung [negação] freudiana do que levar a declaração a sério. Porque hoje Wanderley fala como intelectual-do-partido. O que é curioso. Afinal, foi crítico duro do PT pré-poder, antivarguista, quando Lula atacava a CLT. Mas vestiu a camisa petista quando se deu a reconciliação do lulismo com o varguismo e a retomada do “desenvolvimentismo”.

Para ele, o Lula posterior à “Carta ao povo brasileiro” tinha encontrado o verdadeiro caminho para o país. Daí que sua leitura não se demore nas eleições de 2014. Ele prefere não ouvir falar de estelionato eleitoral ou delinquência marqueteira. Não só não quer se lembrar de que as manifestações de 2013 foram reprimidas pela direita tucana e pelo PT, com participação ostensiva da Força Nacional de Segurança Pública, como acha melhor deixar para lá a corrosão da democracia promovida pelo partido em 2014, ao vencer com um programa que jamais aplicaria.

Em todo caso, sublinhe-se o seguinte: revelador do descompasso do sistema político com relação à realidade, ou de seu desprezo pela sociedade, foi o fato de que tivemos uma eleição presidencial que fez de conta que 2013 não existiu. O establishment político brasileiro reprimiu, não entendeu e ignorou 2013. 

No caso petista, a arrogância diante das manifestações teve dois momentos distintos. O primeiro foi de perplexidade com a “ingratidão” das massas, explicitou Gilberto Carvalho, num de seus típicos rasgos de falsa sinceridade. No segundo, tratou-se de tentar caracterizar as passeatas como subprodutos da excelência dos governos do partido (o povo, em processo ascensional, teria ficado mais exigente), caso clássico de emenda bem pior do que o soneto.

Não foi só o PT. Todos os partidos ficaram atônitos, pela simples razão de que entender 2013 seria se autocolocar em questão — o rei teria de apontar para si próprio e confessar que estava nu. A exceção foi Eduardo Campos e Marina ensaiando discurso sobre uma “nova política”. Mas o acaso silenciou Eduardo, e o marketing metralhou Marina Silva.

Se pudessem, nossos políticos profissionais, contumazes fabricantes de falcatruas, censurariam as redes sociais. São atacados diariamente na internet, com razão. Mas, em vez de refrear a ânsia de seus furtos, odeiam quem os denuncia. Polos quase opostos, nesse aspecto, são representados por Lula e Marina. Lula quer manipular as redes. Nunca se coloca como receptor de mensagens, mas sempre como emissor. Quer transformar a multidão num vasto receptáculo, domesticando-a e submetendo-a a seus propósitos. 

Marina, ao contrário, viu nas redes sociais a emergência de um novo sujeito político, caracterizado, em suas próprias palavras, pelo “ativismo autoral”: “Cada pessoa vai se constituindo em autor, mobilizador, protagonista de sua própria ação”.

Lava Jato

Mas vamos adiante. Ainda em 2014, a Operação Lava Jato surgiu no horizonte. Esquecido de seu discurso contra a corrupção malufista e pela ética na política, o PT olhou com desprezo o revival de “moralismo udenista”. Wanderley vai por esse caminho, frisando que a denúncia de corrupção sistêmica sempre foi apanágio do discurso conservador das elites — contra Vargas, Juscelino, Jango e, então, o PT, com o propósito agora de satanizar as políticas sociais de Lula, já que o conluio partido-empresariado inexistira. Mas as multidões não embarcaram na canoa.

Veio, por fim, a guinada ideológica. Porque 2013 não teve a ver com uma disputa entre esquerda e direita. Bucci viu bem: “As jornadas de junho não podiam ser explicadas como produto de programas políticos, não resultaram de um embate entre ideários de direita e de esquerda. Aquilo foi um grito no escuro […], um protesto enlouquecido contra um poder estatal que tinha ficado surdo, ineficiente, cego, paralisado e paralisante”.

Os problemas de 2013 continuam todos aí. Em 2018 pode ser virada a página da luta em torno do golpe, mas não vamos entrar no capítulo inaugural de uma nova cultura política

Entre 2014 e 2016, a estrada se bifurcou. A insatisfação crescente com a economia e o misto de pasmo e revolta com a corrupção facilitaram o caminho. Grupos de direita tomaram a frente dos atos. Passamos do MPL ao MBL, troca fonética quase imperceptível, mas politicamente clara: da luta pela gratuidade do transporte público à defesa da privatização do setor. Formando-se em novembro de 2014, o Movimento Brasil Livre começou a congregar uma nova direita, mas para logo deixar à mostra vínculos político-partidários com o DEM, o PMDB e o PSDB e se aproximar de evangélicos (o nosso “estado islâmico” em potencial) e ruralistas — e para se ensaiar, no pós-golpe, como braço auxiliar de Temer. 

Nenhuma novidade, contudo: a revista The Economist tratou a turma como afloramento do “thatcherismo” na avenida Paulista (pitoresco, por sinal, ver egressos da classe média nessa trincheira, num país em que a burguesia é antiestatizante, mas sempre procurou destruir, com seus cartéis, o tal do “livre mercado”). No caso, carência criativa que era uma fatalidade dialética: toda negação se contém no espaço daquilo que nega.

E o MBL, antes de trazer ideias próprias, definiu-se contra tudo que cheirasse a PT e à esquerda em geral. Daí que suas propostas se estendam da mera sensatez à total insanidade.

Mas, enfim, voltamos à velha dicotomia que ficara entre parênteses ao longo de 2013. As manifestações não se esvaziaram. Longe disso. Aumentaram. E assumiram outro caráter. A população passou a se definir então com relação ao impeachment. A grande maioria empenhada em derrubar Dilma, e uma minoria contraditória encenando sua defesa. Até que vingou o golpe parlamentar (não mero “resfriado constitucional”), cuja natureza geral Wanderley dilucida com clareza e erudição, demonstrando sua especificidade com relação a outros tipos de interrupção forçada de uma governação constitucional, embora acabe cedendo à tentação de vê-lo mais como articulação de setores conservadores que como desfecho de um conjunto de crises.

Da perspectiva de quem se interessa por uma reinvenção da política (oportunidade histórica que Fernando Henrique e Lula jogaram no lixo) e a configuração de uma nova esquerda no país, restou mais ou menos o seguinte. Uma crise maior — econômica, política e moral — se sobrepôs ao “não nos representam”. Veio a polarização “fratricida”, com o aborto maniqueísta da discussão política mais interessante. Assim, se em 2013 emergiu uma juventude contestadora, indo às ruas contra o PT e o sistema, o que vimos, três anos depois, foi essa mesma juventude dando um nó na cabeça, agora contra o impeachment e a favor do PT e de Dilma, compenetrando-se, subitamente solenizada e envelhecida, de que caíra em suas mãos a “missão histórica” de salvar a democracia brasileira. Toda a nova discussão política foi arquivada.

Daí que se deva dizer que, do ponto de vista político e cultural, o impeachment foi um atraso de vida.

E o que temos à frente? Os problemas de 2013 continuam todos aí, da crise urbana à degringolada dos serviços públicos, passando pelo nosso estatuto semidemocrático. Existe a possibilidade de que uma página política seja virada — mas outra, não. Em 2018 pode ser virada a página da luta em torno do golpe, se não prevalecer a polarização Lula x Bolsonaro. Mas, pelo que se vê, não vamos ao mais importante: virar a página e entrar no capítulo inaugural de uma nova cultura política e um novo sistema de poder. Vale dizer, no capítulo inaugural da construção de uma nova democracia brasileira.

1.  Movimento holandês de contracultura que começou em maio de 1965, sob a liderança de pacifistas e anarquistas. Eles utilizavam ações não violentas (como fumar folhas de chá como se fossem maconha) para provocar a repressão policial violenta e, com isso, desmoralizar as instituições estatais. Eles defendiam a proibição da circulação de automóveis nos centros urbanos.

Quem escreveu esse texto

Antonio Risério

É autor de diversos livros de ensaios, como A cidade no Brasil (34), e do romance Que você é esse? (Record), de 2016.

Matéria publicada na edição impressa #2 jun.2017 em junho de 2018.