Política,

Memórias do cárcere

Ao se apropriarem de suas narrativas, Angela Davis e Preta Ferreira desafiam as hierarquias em torno do poder de escrever a história

01set2020 | Edição #37 set.2020

Nas últimas páginas de seu livro publicado pela editora Boitempo, Preta Ferreira narra seu encontro com Angela Davis, cuja obra passou a ser lançada no Brasil em 2016, pela Boitempo. Em 2019, Angela — que teve sua autobiografia publicada no mesmo ano por aqui — viajou pelo país proferindo palestras e se encontrando com ativistas brasileiras, como Preta Ferreira. 

O plano era que Angela a visitasse na prisão, “mas, para minha sorte, não deu tempo. No fundo, eu nem queria que ela fosse ao presídio, seria egoísmo fazer com que ela revisitasse essa dor”. Entre a libertação de Preta e o encontro com Angela, passaram-se dez dias. Apesar de ter deixado o cárcere, Preta não estava livre dele. Ela carregava a prisão no corpo e na forma de traumas, reatualizados pelas viaturas estacionadas em frente à sua casa. O regime de prisão domiciliar a impedia de estar na rua à noite e nos fins de semana, os períodos em que a professora norte-americana ministrava suas palestras, e foi por isso que ela teve que recusar inúmeros convites para encontrá-la.

Em um domingo, Angela cancelou seus compromissos e foi visitá-la. No diário de Preta, esse foi o “dia em que a Terra parou”. Contudo, sua escrita nos alerta que o encontro não foi nada romântico, pois foi carregado de dor e sofrimento, mas também cheio de potência. Preta Ferreira identifica-se com Angela Davis não só pela história de enfrentamento do sistema de Justiça criminal (“eu vi a mesma história contada duas vezes”), pela proximidade de suas trajetórias (“eu me vi no futuro”), mas também pelo fato de terem  uma ancestralidade comum: “parecia que eu me via naquela mulher” — assim, ela “poderia ser Angela Ferreira ou Preta Davis”.

Trajetórias

Preta teve uma origem pobre e passou a infância longe da mãe, que se mudou da Bahia para São Paulo para fugir da violência doméstica e buscar melhores condições de vida. Em São Paulo, graduou-se em publicidade enquanto trabalhava como secretária em um escritório de advocacia, deslocando-se do que acreditava ser o papel social destinado às mulheres negras e pobres: “Eu achava que tinha nascido para ser doméstica”, escreve ela.

O processo de Preta iniciou-se com uma denúncia anônima, que a acusava, junto a mais três líderes do Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC), de extorquir famílias moradoras das ocupações a partir de taxas condominiais. Cobranças essas que, segundo Preta, eram necessárias para a manutenção do prédio, definidas em assembleias e registradas em cartório. Preta foi presa em sua casa após um mandado de busca e apreensão no dia 24 de junho de 2019. Alguns dias depois, foi decretada sua prisão preventiva, privando-a de sua liberdade por 109 dias. Sua mãe, Carmen Silva Ferreira, líder do Movimento, também sofreu acusação criminal e esteve presa preventivamente entre agosto e outubro de 2019. 

Angela nasceu na cidade de Birmingham, Alabama. Sua mãe pagou a própria faculdade como professora do ensino primário na cidade. Seu pai foi professor de história no ensino médio e, depois, proprietário de um posto de gasolina. A infância no sul dos Estados Unidos foi marcada pela violência racista, tanto que seu bairro foi nomeado Dynamite Hill (Colina dinamite), em referência aos frequentes ataques da Ku Klux Klan. A segregação racial institucionalizada distinguia espaços que podiam ser frequentados por brancos e não brancos, inclusive as escolas, produzindo hierarquias sociais e educacionais ao destinar mais verbas e oportunidades para as pessoas brancas. 

Depois de estudar em escolas exclusivas para negros durante sua infância, ela conseguiu uma bolsa que levava estudantes do sul para frequentar o ensino médio integrado no norte dos Estados Unidos, em Nova York. De lá, foi para a Brandeis University (Massachusetts), sendo uma das três mulheres negras ingressantes na universidade naquele ano. Nessa época, conheceu Herbert Marcuse, estudou literatura francesa e passou um período na Sorbonne em Paris. Em seguida, doutorou-se em filosofia em Frankfurt. De volta aos Estados Unidos no fim dos anos 1960, envolveu-se nos movimentos sociais que borbulhavam à época, na batalha pela igualdade racial e pela luta antiprisional. No início de 1970, foi demitida da UCLA, onde trabalhava como professora, por sua vinculação ao Partido Comunista. No mesmo ano, foi acusada de emprestar a arma usada em um atentado no Tribunal de São Francisco, sendo incriminada por conspiração, sequestro e homicídio, o que provocou sua inclusão na lista dos dez criminosos mais procurados do país. Depois de dois meses na clandestinidade, Angela foi presa em 14 de novembro de 1970. 

Escrita

Sob o discurso oficial de garantir sua segurança, o sistema de Justiça tentou neutralizar Angela enquanto sujeita política no cárcere. Foi, então, colocada em uma ala especial de saúde e depois mantida em isolamento. Proibida de falar, Angela lia e escrevia, e foi aí que começou a redigir trechos que seriam publicados em sua autobiografia. Angela atravessou a solidão e a violência na prisão, que durou dezoito meses, escrevendo cartas e um diário. 

Preta aproximou-se do mundo da escrita precocemente. Começou a ler aos cinco anos, quando passou a escrever suas histórias em cadernos. Durante os quase quatro meses de prisão, escreveu poemas, músicas e as páginas que originaram o livro. A leitura e a escrita são deslocamentos. Na prisão, é poder que desafia o tempo e espaço do confinamento, levando a outros mundos. Preta fala de como na prisão livros e cartas eram seus tesouros e que os distribuía para as colegas, para que se sentissem em outro lugar enquanto lessem. 

Em um jogo de subversão do sistema de Justiça de constituir a subjetividade da acusada, Angela, em 1974, dois anos após sua absolvição, publicou sua autobiografia. Preta lançou o seu diário em 2020, um ano depois da sua prisão. Duas mulheres negras, localizadas no cruzamento das opressões de raça e gênero, mas que se reconhecem como sujeitas políticas e cuja educação formal as protege da violência ordinária do Judiciário. Ao mesmo tempo, a posição de visibilidade e o caráter declaradamente político de suas ações mobilizam de forma diferente o controle, que as enquadra como “terroristas de alta periculosidade”. Ao se apropriarem de sua narrativa, desafiam as hierarquias em torno do poder de dizer e escrever a história. Ao mobilizarem sua produção discursiva, seus corpos políticos deslocam-se da ideia de serem objetos de conhecimento e do exame penal para serem sujeitos de suas narrativas.

Suas biografias são provocações epistemológicas para o campo científico, na medida em que provocam a racionalidade como atributo da branquitude e da masculinidade na elaboração de um saber relacionado à Justiça, baseado nas suas experiências. 

Na prisão, Preta era minoria. Não em termos do perfil das mulheres presas no Brasil, cuja maioria é preta e pobre, mas dentro do lugar de privilégio que seu diploma universitário lhe outorgava: o direito de cumprir a prisão preventiva em cela especial. Depois de cinco dias no presídio de Franco da Rocha, foi transferida para a Penitenciária Feminina de Santana, onde tinha “banho e sol, água quente pra me banhar”. Preta narra como se sentia constrangida ao receber o apoio das outras mulheres quando as guardas anunciavam, no camburão ou na cela coletiva, o nome dela e seu destino especial — “isso aí, você tem que ir, você é estudada”, diziam —, e chama para si a responsabilidade pela ampliação dos direitos a todas elas. 

É interessante como ser minoria dentro em um lugar de “privilégio” mostra como opera a hierarquia de raça e de classe na prisão. A composição da ala especial destinada a Preta retratava uma inversão do perfil social e racial do pátio: das quinze mulheres, doze eram brancas. A autora conta como acompanhou as presas brancas — a maioria envolvida com grandes esquemas de corrupção — indo embora enquanto as pretas ficavam. Fala de como as brancas reproduziam a opressão racial no espaço carcerário, ao quererem delegar às demais presas a limpeza e o cuidado da própria cela. Apesar dos “privilégios” dentro do cárcere, os eixos de vulnerabilidade de Angela e Preta continuam a segui-las. Com diploma ou sem diploma, sua posição de mulher negra não muda; a opressão é contínua. 

Injudiciário

Em seus momentos mais dolorosos, quando a falta da família surgia com intensidade, Preta grafava no diário a palavra “injudiciário”, neologismo que sintetizava sua experiência com o sistema de Justiça criminal. Na sua escrita, questiona o conceito de justiça: “Justiça como? Justiça para quem?”, retratando a angústia de sentir em sua própria carne esse questionamento. Ela também escreve sobre os profissionais que trabalham no sistema: “me pergunto do que adiantou estudarem tanto?”, uma vez que eles raramente visitam as prisões e não sabem o que realmente acontece ali. 

‘A escravidão do Brasil continua, só mudou de nome. Eles me chamam de reeducanda! Sinto como se tentassem me colonizar’, escreve Preta Ferreira

A prisão do Brasil é “navio negreiro”, na sua visão. O passado colonial e escravagista que funda nossa República é determinante na constituição e na perpetuação de desigualdades raciais, sociais e de gênero sob o manto da igualdade jurídica: “A escravidão do Brasil continua, só mudou de nome. Eles me chamam de reeducanda! Sinto como se tentassem me colonizar”. As críticas de Preta vão além das questões do dia a dia de uma penitenciária; abrangem a estrutura do sistema criminal e social. Ao olhar para o sistema como um todo, Preta reflete não somente sobre sua condição, mas também sobre a de suas colegas que não recebem um tratamento digno.

Da mesma forma que a defesa da liberdade de Angela reverberou pelo mundo nos anos 1970, a prisão de Preta também foi cercada de mobilização nacional e internacional. Em seu diário, conta como no primeiro dia na prisão ouvia os gritos de apoiadores que acamparam na porta da delegacia. A solidão do confinamento era interrompida pelas frequentes visitas que levavam comida e livros. Ao deixar a prisão, em 10 de outubro de 2019, depois de três meses e meio presa, declara: “Nasceu outra Preta”. Ela saiu em liberdade, mas não livre da justiça, com medida cautelar de prisão domiciliar, que durou três meses, e foi substituída em dezembro de 2019 por comparecimento mensal perante o juiz. Com três meses em liberdade fora do regime domiciliar, eclode a pandemia de Covid-19, cujas medidas de isolamento a obrigam novamente a ficar em casa, aguardando o julgamento do processo previsto para 2022. Angela foi absolvida de todas as acusações em 4 de junho de 1972. 

Tanto uma contra a outra aproveitaram a mobilização contra a sua prisão para que essa luta se estendesse a outras pessoas. A luta pela liberdade de Angela foi organizada em torno do Comitê Nacional para Libertar Davis e Todos os Presos Políticos, que atuava não só contra a prisão dela, mas constituía um movimento social antiprisional. Da mesma forma, Preta coletiviza a luta pela sua libertação pluralizando os slogans de sua liberdade.

Além das grades

Quando Angela foi embora, Preta bebeu a água que ficara no seu copo, “só pra ser como ela”. Ao recontarem sua experiência com a Justiça, elas denunciam hierarquias no seu funcionamento. Suas escritas autobiográficas resistem à narrativa da acusação sobre si mesmas e impõem outra ordem de discurso.

Em famílias negras em que o ensino superior é mais acessível e a opressão de classe não trabalha em conjunto com as demais, a condição da mulher negra se diferencia de certa forma. Por mais que a sensação de não pertencimento ainda esteja presente, a possibilidade de preencher espaços, antes majoritariamente ocupados pela branquitude, empodera essas mulheres e oferece alternativas diversas quanto a seu futuro. As suas narrativas encontram-se em dois momentos: na luta pelos direitos civis e na experiência dentro do sistema de Justiça criminal. 

Até mesmo quando as mulheres negras conseguem ter ascensão política e social, a violência institucional aflui e movimenta mecanismos para apreender essas subjetividades revolucionárias. Com realidades e contextos diferentes, Angela e Preta se unem nas vivências do racismo estrutural das sociedades em que estão inseridas e nas resistências que movimentam essas mesmas estruturas.

Quem escreveu esse texto

Ana Gabriela Braga

Professora de Direito da Unesp, autora de Preso pelo Estado e vigiado pelo crime: as leis do cárcere e a construção da identidade na prisão (Lumen Juris) e  Dar à luz na sombra: exercício de maternidade na prisão (Editora Unesp), este em coautoria com Bruna Angotti.

Barbara Medeiros Veríssimo

Estudante de Direito na Unesp.

Matéria publicada na edição impressa #37 set.2020 em julho de 2020.