Política Cultural,

Sereia de bigodes

Sedutor, inventivo e com pendor para a política, Aloisio Magalhães construiu a linha mestra de nossas instituições culturais públicas

15nov2018

Aloisio Magalhães não se sentia à vontade com a escrita. Era um ser oral, que despendia a palavra com generosidade em palestras, entrevistas, conversas, geralmente de improviso, confiando na sua reconhecida sedução. Um cineasta malicioso, após um desses encontros, a ele se referiu como “sereia de bigodes”. Esse método socrático, em que a repetição era incontornável como estratégia de persuasão, foi chamado por um deputado de “ação evangelizadora”. De fato, Aloisio tinha fé nas suas convicções.

Ao reunir todas as intervenções orais de Aloisio, ao lado de suas poucas e esclarecedoras páginas escritas, a antologia Bens culturais do Brasil: um desenho projetivo para a nação, organizada por João de Souza Leite, professor e designer, discípulo do autor involuntário, acaba por ser fiel ao espírito do autor, ainda que com prejuízo da concisão, marca registrada do grande designer que ele foi. Do alto de suas 524 páginas, o volume traça um retrato de corpo inteiro, com todos os atributos, à maneira de Eckhout, do ilustre pernambucano nascido em família tradicional que desde moço demonstrou gosto pelas manifestações culturais populares, onde bebia a alegria da autenticidade.

Nos textos, agrupados por temas, mas sem abandonar certa cronologia, podemos acompanhar a trajetória do artista visual que percorreu o caminho que seu talento lhe franqueou: pintor, gravurista, gráfico amador, designer consagrado no inspirado símbolo do Quarto Centenário do Rio de Janeiro e nas marcas das grandes empresas nacionais, e que acabou por desenhar o mais belo dinheiro do mundo, enquanto trazia a tecnologia de impressão da moeda ao país. O artista aceitava serenamente a morte da sua pintura para conformar-se aos limites do real, investindo na função social.

Aloisio Magalhães estudou museologia no Louvre, no início dos anos 1950, quando frequentou o consulado informal do Brasil em Paris: o apartamento do crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes, no bulevar Saint-Germain, sempre aberto a receber os brasileiros de passagem. Mas a viagem decisiva foi aos Estados Unidos, no final do decênio, no convívio com Eugene Feldman, artista gráfico da Escola de Arte de Filadélfia, em que estagiou e mais tarde deu aulas. No início dos anos 1960, Aloisio deu palestras na Universidade de Yale e no Instituto Pratt, de Nova York. Surgia então o designer rigoroso e imaginativo, futuro membro do grupo que criou a ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial), no Rio de Janeiro.

Estilo

Em dez anos, seu escritório de design industrial no Rio vai adquirir reputação nacional e internacional. No convívio dos clientes, Aloisio circula entre empresários, políticos, autoridades e banqueiros. Em 1975, início do governo Geisel, vê-se interpelado por Severo Gomes, empresário e ministro da Indústria e Comércio: “Por que o produto brasileiro não tem um estilo?”. A resposta estava na industrialização predatória do país, feita com transferência de tecnologia, sem observar os parâmetros locais de cultura, questão que os economistas insistem em ignorar ainda hoje.

Aloisio propõe a criação de um programa de pesquisa, o Centro Nacional de Referência Cultural, financiado através de convênios entre ministérios, bancos estatais, o governo do Distrito Federal e a Universidade de Brasília. Não sendo uma instituição, o CNRC podia transitar entre disciplinas distintas e projetos mais ou menos ambiciosos num campo de atuação que não era restringido pela formalidade, associando processos culturais ao desenvolvimento econômico, em busca de sustentabilidade social e financeira.

A cerâmica seriada de Amaro de Tracunhaém, a fabricação do vinho de caju, padrões de tecelagem em Uberlândia, a transformação de pneus velhos em lixeiras e de bulbos de lâmpadas queimadas em lamparinas de querosene eram objetos de pesquisa do CNRC. “Nosso objetivo é estudar as formas de vida e atividades pré-industriais brasileiras que estão desaparecendo, documentá-las e, numa outra fase, tentar influir sobre elas, ajudando-as a dinamizar-se”, disse Aloisio numa entrevista. Uma visão regressiva da industrialização, segundo padrões de invenção e de resistência. Aloisio retomava a pauta de Mário de Andrade, consubstanciada na Missão de Pesquisas Folclóricas, de 1938, que enviara de São Paulo ao Norte e ao Nordeste.

Para Aloisio, os bens culturais eram instrumentos para um desenvolvimento harmonioso. Esse adjetivo é o mais empregado em suas prédicas, não fosse ele um discípulo de Gilberto Freyre. Havia uma perda a reparar no acelerado processo de globalização determinado pelo avanço tecnológico.

O discurso se torna assumidamente político quando afirma que a transferência de tecnologia sem mediação cultural acarreta a dependência econômica. Em outro momento de militância, Aloisio afirma que não se pode esperar o bolo crescer para só então distribuí-lo, discurso dominante no governo da época. A novidade estava justamente em alertar o governo sobre a importância dos valores culturais para as políticas de desenvolvimento, tendência que se consolidava em âmbito internacional.

Um dos projetos mais ambiciosos e exemplares do CNRC foi o planejamento da instalação do complexo portuário de Suape (PE), feita a partir da preservação e do aproveitamento das características ambientais e culturais da região. A questão cultural não estava mais relegada ao plano secundário, mas dialogando com o ponto de vista tecnológico; o fato cultural passava a integrar o fato econômico. 

Ditadura

Aloisio Magalhães não era um dissidente, mas vislumbrava o fim da ditadura e a desejável descentralização das decisões governamentais decorrentes da democratização do país. De resto praticava a política, atuando nas brechas do poder, dialogando com empresários, presidentes de estatais, com o todo-poderoso ministro Golbery do Couto e Silva. Precisando se aproximar do influente ministro Delfim Netto, aproveitou-se de uma amizade comum, com quem almoçava regularmente. Certo dia, o cardápio era a sobra do banquete da véspera, no qual o ministro do Planejamento se esbaldara com uma carne em conserva, rara em mesas brasileiras, cuja origem ignorava. Aloisio sabia perfeitamente que se tratava da viande des Grisons, iguaria suíça, e fez chegar ao ministro a informação insuspeita.

Consolidada sua visão do que consistia a política de valorização do patrimônio cultural por intermédio do CNRC, em 1979 Aloisio Magalhães foi convidado a assumir o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), no início do último governo militar. Sua posse já foi uma demonstração de força, pois o IPHAN absorvia tanto o Programa de Cidades Históricas como o CNRC, que depois de quatro anos de atividades carecia de institucionalização.

Criado em 1937, por inspiração de Mário de Andrade, o IPHAN era o órgão cultural brasileiro de maior prestígio, laboriosamente construído por seu primeiro diretor, Rodrigo Melo Franco de Andrade, que esteve à frente do instituto por 33 anos. Mas, em 1979, estava exaurido, conformado no papel modesto que lhe reservara o governo. Aloisio injeta-lhe recursos, provenientes do Programa de Cidades Históricas, e atualiza o seu escopo, então cristalizado numa intervenção exclusiva em monumentos arquitetônicos — a política da pedra e cal —, pela incorporação dos projetos e do pessoal do CNRC, que havia desenvolvido a vertente imaterial dos bens culturais do projeto visionário de Mário de Andrade.

O teste de fogo veio logo em seguida: castigada por chuvas intensas, Ouro Preto viu ameaçada sua estabilidade geológica, o que punha em risco o maior acervo de construções barrocas das Américas. Aloisio deslocou-se à cidade, promoveu um seminário com as autoridades e a população visando à conscientização da gravidade do problema e arregimentou os recursos para a intervenção saneadora.

A nova concepção do IPHAN demandava uma reforma administrativa, e Aloisio propôs a criação da Fundação Nacional pró-Memória, como extensão do instituto e órgão executor da política patrimonial. Na cerimônia de assinatura da mensagem presidencial encaminhando ao Congresso a criação da pró-Memória, em sua saudação às autoridades presentes Aloisio exerce em grande estilo seu comprovado talento político. Lembra a transitoriedade do poder, os privilégios de classe, de que todos ali haviam se beneficiado, e, ao referir-se ao presidente da República, general João Baptista Figueiredo, homem de temperamento rude, Aloisio destaca-lhe a franqueza autêntica, depositária de sua personalidade transparente. E, para culminar, oferece-lhe um bastão de comando ritual dos índios, que uma vez chacoalhado produz o barulho da chuva, sinal de fertilidade, de criação.

A atuação do IPHAN e da pró-Memória desdobrou-se em várias frentes. Para compensar a falta de meios, Aloisio optou pelas ações exemplares, sinais eloquentes da política adotada. Propõe à Unesco — e obtém — o reconhecimento de Ouro Preto como patrimônio cultural da humanidade. Inovando, o IPHAN promove tombamentos inéditos: do terreiro de Candomblé Casa Branca, na Bahia; da fábrica de vinho de caju Tito Silva, na Paraíba; e da estrada de ferro Madeira-Mamoré, cujo restauro repôs em funcionamento um trecho do percurso, atendendo à demanda da população local, que dela necessitava como “fator de integração social, portanto cultural”. O Museu de Tecnologia Patrimonial, instalado em Orleans, Santa Catarina, com equipamentos e engrenagens feitos exclusivamente de madeira, movidos a roda-d’água, era, segundo Aloisio, “uma disneylândia de verdade, um grande e maravilhoso brinquedo”. 

Quando se especulava sobre a criação do Ministério da Cultura, Aloisio afirmava que ele seria um ministério fraco dos pontos de vista financeiro e conceitual

Diante da crise profunda que se abateu sobre a Fundação Castro Maya, que viu o seu patrimônio dilapidado pela erosão da moeda, Aloisio conduziu a incorporação da entidade à pró-Memória, salvando da falência uma coleção preciosa. Ousada no setor público, a operação acenava com uma tomada de consciência inédita do papel do Estado na preservação do patrimônio artístico nacional. Pouco tempo depois ela foi estendida à Cinemateca Brasileira e ao Museu Lasar Segall, que tiveram destino semelhante.

Ministro de fato

O ministro da Educação e Cultura, Eduardo Portela, intelectual e crítico literário, se demitiu — nunca foi ministro, só esteve ministro — e foi substituído por um general do círculo íntimo do Planalto. Em solidariedade, o secretário de Assuntos Culturais se afastou e Aloisio foi convidado a acumular a gestão da cultura, tanto em sua vertente patrimonial, o que já fazia, quanto na de promoção da atividade artística. Uma ascensão meteórica, que consagrava uma autoridade única para o setor cultural. A situação não escapou à imprensa, que afirmava que “o Brasil tem de fato um ministro da Cultura” e especulava sobre a criação do ministério.

Aloisio refutava, afirmando que “o Ministério da Cultura é prematuro. Seria um ministério fraco não só do ponto de vista financeiro, mas do conceitual”. Mais eficiente seria “impregnar o sistema de governo como um todo da existência de uma cultura própria”. Premonitórias palavras, que não foram lembradas quando da criação, improvisada, do ministério pelo governo da Nova República.

A resistência dos artistas não se fez demorar, fosse pelo temor do controle do governo sobre a produção artística, fosse pela prioridade que o novo titular eventualmente desse à vertente patrimonial, em detrimento da produção contemporânea. Pressionado, o designer cunhou uma imagem poderosa para ilustrar sua concepção de cultura pelo entrelaçamento de herança com criatividade: o bodoque (estilingue), que quanto mais é tensionado para trás, mais longe arremessa a pedra. Lembrando sua formação de artista visual, Aloisio tratava com humor uma oposição que no fundo era de origem política: “Acho graça quando me chamam de passadista”.

Era agitada a sua agenda internacional: conciliava a recuperação, no exterior, de documentos relevantes — como partituras coloniais de música barroca mineira no Uruguai ou os processos da Inconfidência Mineira, comprados num leilão em Londres — com gestões na Unesco, em defesa da candidatura de Ouro Preto, Olinda e das Missões Jesuíticas ao reconhecimento de patrimônio mundial. Em junho de 1982, ele embarcou para Veneza, onde participaria de uma reunião dos países latinos filiados à Unesco.

Na sessão de abertura, diante da proposta de criação, nos diversos países, de instituições para a valorização e defesa da herança comum latina, Aloisio reagiu: “Não posso aceitar que, para mantermos a nossa latinidade, seja deixado de lado o problema econômico e continuemos debaixo dos riscos terríveis da pobreza, da miséria e da morte”. Apontou o caráter eurocêntrico e colonialista da proposta, como já fizera em outra ocasião, ao defender o Senegal das normas impositivas da Unesco a um país pobre, desprovido de meios para atendê-las. 

Sua fala repercutia a exaltação política ambiente, e Aloisio foi eleito presidente do encontro. Pouco depois, passou mal: vítima de dois derrames cerebrais, foi transportado até um hospital em Pádua, onde morreria dias depois, não longe da Capela dos Scrovegni, em cuja parede central o seu dileto Giotto estampara o afresco do Juízo Final.

O legado de Aloisio Magalhães na política cultural é composto de espírito público, lucidez administrativa, amor ao autêntico e popular, à diversidade, à herança emancipadora, de internacionalismo sem subordinação, de perspectiva de impregnação da cultura na vida social e econômica.

Quem escreveu esse texto

Carlos Augusto Calil

Cineasta e ensaísta, escreveu Memória paulistana (Imesp).