Política Cultural, Religião,

Fala que eu te escuto

É preciso dialogar com os evangélicos, mas barrar o avanço dos pastores na política

05nov2018

Quando um evangélico diz “bandido bom é bandido morto”, Jesus recebe uma rajada de choque elétrico, deixando cair a taça de ouro sagrado no chão, espalhando uma generosa dose de Château Haut-Brion que acabara de tirar da torneira da pia. Porque lá não é bagunça. Cai Brion da torneira. Essa parada de tornar água em vinho vem daí. No céu é vinho e Royal Salute pra lavar louça, tomar banho, encher a piscina e, claro, beber. Senão, qual a graça de ir pro Paraíso? Diz que no Inferno bebem cerveja de milho. Abafa.

Mas eu, como protestante, criado no protestantismo, saindo do útero da mãe com uma Bíblia e um sermão pronto para abordar as pessoas na rua, me interesso muito mais pela derrota da igreja evangélica na política que com a sua vitória. 

Igreja evangélica é um problema sério. Há uma diferença aqui. Veja: “protestante”e “evangélico” são coisas diferentes. Um existe desde o século 16. Lutero, Calvino, aqueles trutas que brigaram com Roma. Então, podemos dizer que as igrejas protestantes têm quinhentos anos. Evangélico, não. Evangélico é a dissidência do protestantismo, nascida no fim do século 19, e que cresceu no século 20. 

Fica difícil pra quem está de fora entender isso. Se é batista, logo é evangélico. Martin Luther King era batista. Mas Bolsonaro também é. São batistas, mas pertencem a instituições que não dialogam entre si. E o discurso teológico e político muda.

Das dissidências evangélicas do século 19, muitas têm origem batista. Assembleia de Deus é uma delas. Hoje, é a maior evangélica no país. O pentecostal é o evangélico que acredita em milagres e intervenções sobrenaturais do Espírito Santo. O neopentecostal também, mas na prática abandona a parte de “deveres” e põe ênfase na de “direitos” do fiel. Na verdade, basicamente o dever do fiel é entregar dinheiro, e seu direito é receber milagre de manhã, de tarde e de noite. Enquanto Deus está no centro da teologia protestante, quem está no centro do discurso neopentecostal é o homem.

Tem um Deus, na teologia neopentecostal, empenhado em fazer milagre pra caramba na vida do fiel, dando a ele casa, carro, assinatura de tv a cabo, mas não é um Deus muito interessado em resolver tretas sociais e econômicas em lugares como Maré, Capão Redondo, Alemão, Síria.

As igrejas neopentecostais recebem muitos emergentes, que moram em condomínio de luxo, mas amam estrogonofe de frango e ouvem Jorge Vercillo

Tanto que as igrejas neopentecostais recebem muitos “emergentes”, que saíram das classes C e D para as classes A e B. Moram num condomínio de luxo, têm um SUV zerado, mas mantêm hábitos de uma vida suburbana: amam estrogonofe de frango e ouvem Jorge Vercillo até pra dormir.

Bom, eu não pertenço a essa classe emergente, ainda moro no subúrbio, e sim: ouço Vercillo enquanto me entupo de estrogonofe, sem culpa.

São pessoas que enxergam na sua ascensão profissional algo maravilhoso que Deus deu a elas, como a fuga do Egito, em que Deus abre o Mar Vermelho. Um Deus materialista, para um sujeito materialista, geralmente vindo da base da pirâmide. Não há muitas pesquisas sobre isso, e as que há costumam ser falhas, pois não consideram as inúmeras variantes na formação do sujeito evangélico. Mas é possível dizer que a igreja neopentecostal se vale dos processos de ascensão econômica para crescer. Esse é o target. O cara que estudou, fez curso técnico em áreas em expansão (TI, por exemplo: tem muito evangélico que é profissional de TI e subiu na vida no período de 2009-14, no embalo das operações da Petrobras). Quem vai receber esses novos burgueses? A igreja neopentecostal.

As pessoas melhoram de vida, mas continuam com os mesmos preconceitos e angústias que carregavam quando eram mais pobres. “Prosperamos porque Deus nos abençoou. Não vamos mudar nossos valores, para que Ele continue conosco.” Isso é repetido todo domingo, três, quatro vezes, na cabeça dessas pessoas.

Escolas

A criação de escolas e universidades é uma prática protestante. A Universidade Columbia foi fundada por protestantes, assim como o Mackenzie, em São Paulo, e o Colégio Batista, no Rio. Mas neopentecostal não monta escola, nem colégio, nem faculdade, seminário, nada. Preferem ser o lugar de segurança, de acolhimento, onde Deus te recebe. Deus não quer que você mude, você está ótimo como está, e não vamos falar de assuntos como periferia, se essas pessoas não melhoram de vida é porque não se esforçam (meritocracia, preconceito de classe, de origem, racismo). Mexer nisso aí é complicado. Exige revisões. Toma o tempo que poderia estar sendo usado para pedir mais dinheiro.

A preocupação tem sido: evangélicos no poder político. E eu te digo, preocupe-se, sim. Eu fui muito crítico quando vi Dilma ir à Assembleia do Brás e começar o discurso com: “Feliz a nação cujo Deus é o Senhor”. 

O avanço dos pastores na política deveria ser parado por lei. Se juiz não pode, se militar não pode, pastor, no exercício do sacerdócio, também não pode concorrer a cargo eletivo. No caso da Universal, há um agravante. Elegem Crivella aqui como um protótipo para pastores da Universal em qualquer lugar do mundo. Lembre-se: tem Universal em quase duzentos países. Lembro de Crivella ao lado de Lula. E lembro de Crivella impichando Dilma. O Deus dos caras é o ventre.

Pastores com discursos ostensivos como Malafaia e Feliciano serão cada vez menos presentes. Os novos pastores perceberam que isso isola e estigmatiza. A estratégia do “falem mal” que é reproduzida por Bolsonaro tende a decepcionar nas urnas. Há quem acredite que Bolsonaro vença, mas eu ainda penso que haverá reações sérias, e um de seus nichos será a igreja.

É preciso dialogar com o evangélico, considerando-o agente político com entrada na periferia e nas classes A e B. Vejam: eu sou crente, e estou aqui, na Quatro cinco um. Minha página alcança 5 milhões de pessoas por mês e aborda temas sociais, econômicos e raciais. Há crentes críticos, senhores. Que acreditam no Estado laico, o qual, aliás, nem existe, num país com mais de doze feriados católicos.

Ninguém que se dedica a assuntos políticos poderá se esquivar dos crentes. O Brasil é umbanda, é candomblé, é budista, é católico, e é crente.

Em poucos meses, será 2018. E o que temos preparado, para quem será? A disputa do Brasil pelo Brasil nunca foi tão intensa, desde que pusemos os pés aqui. Valha-me, Deus.

Quem escreveu esse texto

Anderson França

 (Dinho) é autor de Rio em Shamas (Objetiva).