Poesia,

Morte cantada

Lançada primeira tradução integral da obra que é fruto da relação amorosa de Maiakóvski com a artista Lilia Brik

01dez2018 | Edição #19 dez.18/fev.19

Grande nome da poesia do século 20, o russo Vladímir Vladímirovitch Maiakóvski (1893-1930) escreveu “como um vivo aos vivos”, habitando o presente e ansiando pelo futuro. Talvez por isso seus versos sejam tão atuais: “Não estamos alegres/ É certo/ Mas também por que razão/ Haveríamos de ficar tristes?/ O mar da história/ É agitado/ As ameaças/ E as guerras/ Havemos de atravessá-las/ Rompê-las ao meio/ Cortando-as/ Como uma quilha corta/ As ondas”.

Transpassando os limites da autorreferência, Maiakóvski mergulhou profundamente na existência

Navegou por diversos campos em sua breve existência. Ingressou muito jovem no Partido Operário e, aos quinze anos, foi preso numa tipografia clandestina. Em 1911, passou a estudar artes na Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura de Moscou. Maiakóvski escreveu versos, peças de teatro, letreiros e cartazes, roteiros para cinema, ensaios de teoria literária e artigos para a imprensa. Pioneiro multiartista transemiótico, foi também ator de teatro e cinema, sabendo conjugar como ninguém revolução política e arte de vanguarda. “Sem forma revolucionária não há arte revolucionária”, proclamava.

Como um louco

Extremado, criou como quem vive “um incêndio no coração”. Explicitamente autobiográfico, Maiakóvski incluía em seus textos os nomes de musas, amigos, escritores preferidos, das ruas onde morou, e também datas, praças, acontecimentos históricos e familiares. Transpassando os limites da autorreferência, mergulhou profundamente na existência e deixou a marca de sua genialidade em versos sonoros e intensos: “Eu para mim é pouco/ Algo se empenha em sair de mim como um louco”.

A substituição de ‘amor’ por ‘isto’ é uma crítica à censura bolchevique aos ‘temas de cunho pessoal’

No Brasil, ficou conhecido por citações esparsas de seus versos, alguns muito célebres: “Comigo a anatomia ficou louca, sou todo coração”, ou ainda, “Melhor morrer de vodca que de tédio”. Porém, apesar de passado um século da publicação original, sua obra completa ainda não foi traduzida para o português.

Saudamos com alegria Sobre isto, publicado pela Editora 34, fruto do estudo e dissertação de mestrado de Letícia Mei. A 34 vem editando traduções importantes e obras de referência, sendo a responsável, no caso de Maiakóvski, pelas peças O percevejo, com versão de Luís Antonio Martinez Corrêa e posfácio de Boris Schnaiderman, e Mistério-bufo, traduzida por Arlete Cavaliere. Sobre isto é composto pela tradução do poema, texto original em russo, extensa série de notas, posfácio assinado por Letícia, algumas cartas trocadas por Maiakóvski e Lilia Brik e ainda pelas fotomontagens do artista russo Aleksandr Ródtchenko. 

O maior mérito do trabalho de Letícia Mei é se manter afinada com a musicalidade e os ritmos originais do poeta cubofuturista, bebendo tanto de suas orientações práticas como do arsenal teórico proposto pelo linguista Roman Jakobson, contemporâneo e amigo de Maiakóvski. Eis alguns exemplos dessa virtude: “Um rio/ Magnífico rio/ Um frigorífico” (em “O quarto gotejante”); “Garis varrem/ o corpo/ da calçada fria./ Beira o dia./ Levanto à sombra do Sena,/ uma cinza cena de cinema” (em “Semimorte”) e, por fim os versos “Onde quer que eu morra/ morrerei cantando / […] Mas seja qual for a minha sorte/ — A morte é a morte” (em “Petição endereçada a…”).

Faltou, no entanto, maior contextualização: qual o lugar ocupado por este poema na produção do autor, e em especial em relação aos outros textos da lírica amorosa de Maiakóvski, sobretudo em face dos diversos escritos dedicados à mesma musa Lilia Brik; do referencial biográfico; e ainda informações sobre o histórico das traduções anteriores de sua poesia e de seu teatro, das encenações de suas peças, da recepção e difusão da obra de Maiakóvski no Brasil. Pelas lacunas do país, é importante que um livro como este venha acompanhado de um arco histórico mais completo.

Antes do trabalho valoroso de Mei, tivemos não só a contribuição gigantesca das recriações de Augusto e Haroldo de Campos, os fundamentais estudos e traduções de Schnaiderman, na década de 1960, a vida e obra escrita por Fernando Peixoto, mas também o trabalho de apresentação no Brasil por Carrera Guerra e o pioneirismo de Lila Guerrero na América Latina, que já o havia publicado em espanhol em 1943.

Sobre isto quer dizer “sobre amor”. A substituição de “amor” por “isto” é uma crítica à censura bolchevique aos “temas de cunho pessoal”. Dedicado a Lilia Brik, o poema foi escrito entre 1922 e 23. Muito mais do que musa de Maiakóvski, Lilia Brik, nascida Lilya Kaganem em 1891, dirigiu filmes e documentários, um deles com roteiro de Maiakóvski e Viktor Chklóvski, além de ter sido retratada por artistas como Aleksandr Ródtchenko, Fernand Léger, Henri Matisse e Marc Chagall. Depois da morte do poeta em 1930, Lilia chegou a escrever pessoalmente para Stálin, reclamando da negligência em relação à obra do poeta. Ela cometeu suicídio aos 87 anos.

A poesia de Maiakóvski é teatral, criada para a leitura ao vivo, em voz alta, mirando os grandes auditórios e a praça pública

Elsa Triolet, irmã de Lilia Brik, foi uma das primeiras difusoras da obra de Maiakóvski na Europa. Nascidas em Moscou em uma próspera família judia, as irmãs tocavam piano e falavam alemão e francês. Apaixonada por Maiakóvski, Elsa levou o jovem poeta à sua casa. Mas ele caiu de amores pela irmã mais velha, já casada com o crítico literário e editor Osip Brik. Viveriam a partir de então, o casal e ele, um ruidoso ménage à trois, com uma profunda amizade e troca intelectual. O triângulo incomodou, e muito, as autoridades. Somem-se a origem judaica de Lilia e Osip, o antissemitismo e o conservadorismo burocrático da União Soviética e a censura proletária a arroubos tanto estéticos como comportamentais.

Elsa Kagan mudou-se para a França em 1918 e adotou o sobrenome do marido. Conhecida como Elsa Triolet, passou a frequentar os surrealistas e a conviver com artistas como Léger e Marcel Duchamp. Elsa Triolet encontrou o poeta Louis Aragon em 1928 e permaneceu com ele por 42 anos. Em 1966, Agnès Varda fez um documentário sobre essa história de amor.

Trata-se, portanto, de mulheres criadoras fascinantes e com produção artística relevante, tanto Lilia Brik como Elsa Triolet (e Lila Guerrero): tiveram papel decisivo na divulgação da obra de Maiakovski e não merecem permanecer nessa névoa de silêncio que encobre a atuação feminina.

Ressuscita-me

A poesia de Maiakóvski é teatral, seus poemas foram criados para a leitura ao vivo, em voz alta, mirando os grandes auditórios e a praça pública. Em vida, o poeta realizou declamações para milhares de pessoas, a plenos pulmões. Maiakóvski destacou-se também como dramaturgo. Em comemoração ao aniversário da Revolução de Outubro, Mistério-Bufo foi encenada sob direção de Meyerhold, com cenários de Casimir Maliévitch, e o próprio Maiakóvski interpretando três personagens. Em 1929 estrearia O percevejo, com cenários de Ródtchenko, trilha sonora de Shostakóvitch e direção de Meyerhold. 

No Brasil, a peça é traduzida e encenada por Luís Antonio Martinez Corrêa em 1981. Foi exatamente nessa encenação brasileira, com cenários do saudoso Hélio Eichbauer, que surgiu a canção “O amor”, composta por Caetano Veloso e Ney Costa Santos. A letra inspira-se no epílogo do poema Sobre isto, e diz: “Ressuscita-me/ Ainda que mais não seja/ Porque sou poeta/ E ansiava o futuro/ Ressuscita-me/ Lutando contra as misérias/ Do cotidiano/ Ressuscita-me por isso/ Ressuscita-me/ Quero acabar de viver o que me cabe/ Minha vida/ Para que não mais existam/ Amores servis”.

Na peça, a música é uma referência a Prissípkin, o protagonista ressuscitado depois de ter ficado congelado por cinquenta anos. A canção e o poema de Maiakóvski acabam com os belíssimos versos: “Ressuscita-me/ para que a partir de hoje/ a partir de hoje/ a família se transforme/ e o pai / seja pelo menos o universo/ e a mãe/ seja no mínimo a terra”. 

Maiakóvski morreu, suicidado, em 1930, aos 36 anos. É preciso ressuscitá-lo, sempre. Permanece sua poesia, cada dia mais atual.

Quem escreveu esse texto

Beatriz Azevedo

Escreveu Antropofagia Palimpsesto Selvagem (Cosac Naify). 

Matéria publicada na edição impressa #19 dez.18/fev.19 em novembro de 2018.