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Livro reúne respostas de cinquenta poetas a cinco perguntas sobre os lugares da poesia no mundo de hoje

01maio2019 | Edição #22 mai.2019

“A hiperexposição de tudo que pensamos, sentimos, imaginamos, no tempo real das redes sociais, blogs, etc., obriga a poesia a procurar outra coisa para fazer?”, perguntou Tarso de Melo, em e-mail enviado a cinquenta destinatários, todos poetas como ele. Em torno dessa e de outras quatro questões armou-se uma mesa-redonda das mais anárquicas, e o resultado foi organizado em um livro que é uma espécie de antimanifesto: Sobre poesia, ainda.

Não há nada de programático no volume, nem se formaram panelas em torno de bandeiras. As respostas ora se afastam, ora se aproximam, ora se reafirmam umas às outras, propondo novos pontos de vista. O que sai daí é uma narrativa mutante, feita a partir de um lugar muito peculiar: a criação. Os próprios criadores de poesia ampliam (desdobram, confundem, distorcem) as questões em vez de defini-las ou esclarecê-las — e esse é o grande mérito do livro. 

As respostas à pergunta que abre esta resenha (e o livro) dão o tom fértil dessa bagunça. “Não pode ser boa uma coisa que só e sempre se ocupa de si própria. A poesia devia sim ir atrás de outras coisas para fazer. Botem a poesia para lavar louça, capinar um lote, pegar ônibus cheio!”, exclama Adelaide Ivánova. “A poesia pode ser qualquer coisa, menos obrigada a algo, porque não é da competência dela estar a serviço de coisa alguma”, opina Ana Estaregui. “As tais redes sociais não são um fim em si, mas apenas veículos de comunicação, meios, suportes, não geram poesia”, diz Reynaldo Damázio. “Apenas a acolhem como uma espécie de conteúdo estranho, que transita na contramão do exibicionismo, da afetação, da pressa.” 

Enquanto o leitor reflete sobre qual das três respostas faz mais sentido, vem Alberto Pucheu chamar a atenção para uma canibalização entre redes sociais e poesia. “A poesia contemporânea, ou, seguindo minha terminologia, apoesia contemporânea, entra nas redes sociais, se faz ali mesmo, se expõe ali mesmo, se utiliza muitas vezes de seus materiais, atravessa-a, e, sabe-se lá como, continua, nesse momento apático e anestésico da maioria das pessoas, nos assombrando. Poderia resumir tudo isso com uma frase de Mandelstam, que disse: ‘A poesia é absolutamente outra coisa’.”

Quando disparou as perguntas aos amigos, Tarso de Melo decidiu não impor restrições em relação ao tamanho ou formato das respostas. “Publiquei como recebi”, explica. “Algumas vieram enormes, outras curtas, alguns transcreveram os poemas, outros apenas apontaram os poetas”.

Na turma, há nomes com uma extensa história na poesia brasileira, como Ruy Proença, Heitor Ferraz Mello, Ricardo Aleixo, Sergio Cohn e Marcos Siscar, ao lado de poetas mais jovens, como Guilherme Gontijo Flores, Casé Lontra Marques, Bruna Beber e Yasmin Nigri. 

Nem mesmo a diferença entre gerações serve para definir duas possíveis grandes tendências no livro — o que é um alívio. “Quando há muita convergência, uma enquete assim não faz muito sentido. Quando há muita divergência, suspeito que também não”, diz Tarso de Melo. 

Como numa mesa-redonda anárquica, não há programa nem consenso: é um antimanifesto

Mas qual é a importância de reunir hoje esses nomes para discutir poesia? “Estranhamente, é nas condições mais adversas que a poesia encontra o seu momento propício, o que nos ajuda a entender por que vivemos uma época de produção poética tão relevante por aqui, em quantidade e qualidade”, afirma o organizador. 

Para o poeta e crítico literário Leonardo Gandolfi, pensar a poesia pode ser uma prática inerente à própria produção: “Isso se dá porque a poesia ou o poema não estão garantidos de antemão. A cada vez, a cada poeta, a cada poema, é preciso começar do zero”. Já Carla Diacov vê Sobre poesia, ainda como um treino necessário: “É um exercício fundamental, quase diário. Pensar, repensar, estranhar o primeiro ou o último pensamento”. 

Perguntas

A dificuldade para encontrar o lugar da poesia no mundo leva os poetas a “em vão e para sempre repetir(em) os mesmos sem roteiro tristes périplos”?

O poeta continua a ser um fingidor e a poesia, um “fingimento deveras”?

Do que seus poemas têm fome?

Indique um poema que lhe parece, hoje, especialmente fazer todo sentido. Por quê?

Eis as demais questões feitas por Melo, que começaram a ser respondidas em 2015. A intenção era publicá-las no blog Contra Tanto Silêncio, que mantém desde 2013. Assertivas, as perguntas foram formuladas para serem contestadas, inquietar os poetas, fazê-los pensar a fundo. 

“Quando comecei a disparar as questões, não tinha a intenção de transformar o conteúdo em livro”, afirma Melo, autor de Alguns rastros (2018), Íntimo desabrigo (2017), entre outros títulos. “Só depois de 28 respostas publicadas no blog, durante uma conversa com meu editor, ganhou força a ideia de aumentar o número de poetas colaboradores e reunir todo o material numa publicação.”

Para além da produção própria, o autor é um notório divulgador da poesia brasileira: nos anos 2000, com Eduardo Sterzi, editou a revista Cacto. Hoje, ao lado de Heitor Ferraz Mello, é curador do Vozes, Versos — Leituras de Poesia, sarau que ocorre em São Paulo desde 2016.

A seleção resultante da última das cinco perguntas é belíssima e valeria um livro independente.

Apareceram versos de Carlos Drummond de Andrade (“Nosso tempo”, citado por Lilian Aquino), Mário Cesariny (“Autografia I”, apontado por Júlia de Carvalho Hansen), Konstantinos Kaváfis (“À espera dos bárbaros”, escolha de Dirceu Villa), Arthur Rimbaud (“Cidade”, citado por Antônio Moura), Wislawa Szymborska (“Os filhos da época”, indicação de Nina Rizzi), entre muitos outros. 

Szymborska, aliás, é a mais citada, talvez pela enorme capacidade de unir engajamento político, ironia, humor e informalidade em seus versos: 

Somos filhos da época,
e a época é política.
Todas as coisas — minhas, tuas, nossas,
coisas de cada dia, de cada noite
são coisas políticas.
[…] 
O que dizes tem ressonância,
o que calas tem peso
de uma forma ou outra — político. 

É o que os poetas fazem aqui: nunca desistem de trazer à luz o que é urgente. Ou, como diz Szymborska, lembrada por Prisca Agustoni: “Para aqueles que pensam, nada é sagrado”.  

Quem escreveu esse texto

Michaela von Schmaedel

Jornalista de cultura especializada em poesia contemporânea, trabalha como editora na agência Rima

Matéria publicada na edição impressa #22 mai.2019 em abril de 2019.