Música, Poesia,
Bob Dylan no papel
Tradução das letras do escritor e compositor prioriza o conteúdo e não a forma, mas é a opção mais adequada para quem admira suas canções
12nov2018 | Edição #5 set.2017Quando Bob Dylan foi anunciado como vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, em 2016, foram tão rápidas as comemorações dos fãs quanto a indignação com o fato de se tratar de alguém que, a rigor, não tinha sua imagem associada ao mundo dos livros, onde costumam morar todos os outros vencedores do Nobel.
Em todo o mundo circulam livros sobre a carreira de Dylan, sobre cada um de seus discos e canções, mas de sua autoria o que há é apenas a ficção Tarântula (1971) e o primeiro volume de suas Crônicas (2004). No caso brasileiro, a situação era um pouco pior: quando o prêmio lhe foi concedido, Tarântula existia apenas numa edição raríssima de 1986, da Brasiliense, em tradução de Paulo Henriques Britto, e a primeira edição de Crônicas, lançada aqui em 2005, também estava esgotada.
Era previsível, portanto, que o leitor brasileiro embalasse na indignação com o discurso de que “um cantor” ganhou o prêmio “dos escritores” (neste país que tem muitos letristas da canção popular que podem ombrear com Dylan e voar bem acima de grande parte da poesia que sai em livros, mas ainda discute a hierarquia entre “poema” e “letra de música”…).
Também era previsível a urgência das editoras nacionais para recolocar Dylan nas livrarias e, assim, mais alguma lenha na fogueira: a Planeta relançou Crônicas – volume 1 (trad. Lúcia Brito), a Tusquets lançou nova edição de Tarântula e a Companhia das Letras lançou Letras (1961-1974), primeiro volume da tradução de The Lyrics 1961-2012, que reúne as letras cantadas por Dylan em seus 33 álbuns.
Antes de entrar nos livros, podemos perguntar: Dylan precisava dos livros para ficar claro que sua obra como poeta, ainda que tenha sido impressa antes no vinil, com voz, violão, gaita e banda, é um dos mais colossais capítulos da arte — da música, sem dúvida, mas também da literatura — das últimas décadas? Vale lembrar que Dylan declarou que “músicas são diferentes da literatura. Elas são feitas para serem cantadas, não para serem lidas. As palavras das peças de Shakespeare eram feitas para serem apresentadas no palco. Assim como as letras em canções são feitas para serem cantadas, e não lidas numa página”.
Aliás, o discurso de Dylan à Academia Sueca é uma preciosidade: ele faz um grande elogio à literatura, especificamente a Moby Dick, Nada de novo no front e Odisseia, falando apaixonadamente dos livros, lembrando o impacto que certas passagens lhe causaram e a importância que têm para suas composições. Essa ponte entre Melville, Remarque, Homero e, por fim, Shakespeare não tem nada de inocente. Ao elogiar a literatura, Dylan está respondendo à (falsa) questão que incendiou os jornais enquanto ele estava em silêncio depois da divulgação de seu nome como Nobel de Literatura: por dentro, bem por dentro, as grandes obras de arte conversam em esferas bem mais ricas e, nelas, jamais um violão ofuscará a percepção da força literária de suas letras.
Traduções
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A tradução das letras de Dylan no Brasil tem plena consciência disso e se propõe como um “suplemento” para as canções. O tradutor, Caetano W. Galindo, comenta em nota no livro a ideia que o moveu durante a tradução das letras: não era seu objetivo “transcriá-las” como poemas em português (como grande parte da tradição dos tradutores de poesia entre nós firmou), tampouco fazer letras de música em português a partir das letras de Dylan. O calhamaço Letras (1961-1974) chega, segundo seu tradutor, como um livro para ser lido ouvindo os discos de Dylan. Desse modo, a edição aposta num Bob Dylan indivisível: na fusão entre sua voz, os arranjos, a letra original e o acesso aos sentidos muito vezes obscuros das letras que a tradução nos oferece.
Quando “Rambling, Gambling Willie” vira “Willie, que jogava e andava à toa” ou “Whatcha Gonna Do” é traduzido como “Me diga o que é que você vai fazer” fica evidente a opção do tradutor por privilegiar “o quê” (conteúdo) Dylan diz em detrimento de “como” (forma) ele diz. Esta é uma das questões mais complicadas em matéria de tradução de poesia, e o leitor brasileiro é, digamos, “mal-acostumado” com uma oferta impressionante de grandes poetas que são tradutores dedicados de poesia, criando poemas em português com a intensidade literária dos originais.
Mas, no caso de Dylan, a decisão do tradutor talvez tenha sido mesmo a mais inteligente diante de um conjunto gigantesco e heterogêneo de letras, o que não impede que novos tradutores se aventurem a “transcriar” Dylan para ser lido ou cantado em português. O desafio está aberto.
Pode-se dizer mesmo que essa ideia do livro das letras como “suplemento” para os discos vale também para a edição original de Lyrics. Também o público de língua inglesa não tem em mãos um livro que dispense a apreensão da arte de Dylan como um todo. Não é um livro de poemas de Dylan: é o livro de um trovador e parte do seu prazer depende de ir além da página.
Enfim, diante de nossos olhos ou nos ouvidos, Dylan é um mito. Um gigante com as palavras. É por isso que o rastro de sua influência pode ser percebido numa infinidade de grandes discos de música popular de todo o mundo, mas também em boa parte da poesia escrita enquanto seus discos soavam em todos os cantos.
Como todo rock star nessa estatura, a repercussão de tudo que Dylan faz — e até do que não faz — é desproporcional; acumulam-se sobre sua vida discreta infinitas versões que ele não faz a menor questão de confirmar ou desmentir. Que tenha ganho o Oscar, o Nobel, tocado para o papa, causado a fúria de seus fãs quando “virou elétrico” ou pregou com fervor religioso… são apenas mais alguns desafios que Dylan espalha pela estrada em que o seguimos na sua never ending tour. E ele continuará caindo como uma chuva pesada sobre nós.
Matéria publicada na edição impressa #5 set.2017 em junho de 2018.
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