Poesia,

A hora e a vez de Hilda Hilst

Homenagem na Flip convida a reler em conjunto a obra de uma poeta marcada pela dualidade entre o sublime e a blasfêmia

01abr2018 | Edição #10 abri.2018

Quais os melhores modos de aproximação à enorme contribuição literária dessa poeta, prosadora, dramaturga e ocasional artista visual? 

Começando pela prosa, pela poesia, ou alternando-as? Na sequência cronológica, como sugerido por esta edição recente, Da poesia? Ou por alguns pontos altos, momentos especialmente elevados de sua criação? Por exemplo, Da morte. Odes mínimas, de 1980? Ou os conjuntos de poemas que, originariamente, haviam sido agrupados sob o título de Amavisse, de 1989? Pelo meio, pelo salto representado por Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974), com o mais que antológico “Os dentes ao Sol”?

A inversão cronológica pode ser um caminho. Algo semelhante às aproximações recomendáveis a Jorge de Lima, poeta da predileção de Hilda: a partir de Invenção de Orfeu, tudo muda, a poesia precedente ganha mais peso, adquire novos sentidos. Já na Ode fragmentária (1961), está a poeta que o leu e entendeu (“Quanto à poesia, o grande nome é mesmo Jorge de Lima”):

Morremos sempre.
O que nos mata
São as coisas nascendo:
Hastes e raízes inventadas
E sem querer e por tudo se estendendo
Rondando a minha
Subindo vossa escada.
Presenças penetrando
Na sacada.

Leituras paralelas da prosa e poesia levarão a indagar como foi possível ela lançar quase simultaneamente, ao redor de 1980, a copiosa torrente de barbaridades de A obscena Senhora D. e um conjunto de poemas especialmente sublime, Da morte. Odes mínimas
Em um, blasfemando e imprecando à vontade:

E agora vejamos as frases corretas para
[quando eu abrir a janela à sociedade da vila:
o podre cu de vocês
vossas inimagináveis pestilências
bocas fétidas de escarro e estupidez
gordas bundas esperando a vez. de quê?
e cagar nas panelas
sovacos de excremento
buraco de verme no oco dos dentes
o pau do porco
a buceta da vaca
a pata do teu filho cutucando o ranho
as putas cadelas
imundos vadios mijando no escuro
o pó o pinto do socó o esterco o medo, 
[olha a cançãozinha dela, olha o rabo
da víbora, olha a morte comendo o
zóio dela, olha o sem sorte, olha o
esqueleto lambendo o dedo
o sapo engolindo o dado
o dado no cu do lago, olha, lá no fundo
olha o abismo e vê
eu vejo o homem. 

No outro, expressões do sublime:

Se sussurrares
Teu nome secreto
Nos meus caminhos
Entre a vida e o sono
Te prometo, morte,
A vida de um poeta.
Se me tocares
Amantíssima branda,
Como fui tocada pelos homens
Ao invés de morte
Te chamo
Poesia, fogo, fonte, palavra viva, sorte.

Ou então, também sincronicamente, por volta de 1990, a elevada poesia de Amavisse e a propiciação de escândalos na prosa de O caderno rosa de Lori Lamby.

Esta edição recente, ao possibilitar a visão de conjunto da poesia, também permite detectar chaves e prenúncios dessa dualidade. Já em Roteiro do silêncio (1959), proclamava a “Aflição de ser eu e não ser outra”. Perguntava: “É meu este poema ou é de outra?”. Na sequência, mostrava por que uma discografia se adicionaria à obra publicada:

Tenho te amado tanto e de tal jeito
Como se a terra fosse um céu em brasa.
Abrasa assim de amor todo meu peito
Como se a vida fosse voo e asa.

O leitor verá as antecipações do salto representado por Júbilo, memória, noviciado da paixão, publicado após sete anos de aparente silêncio poético, no período da despedida da metrópole, quando, aparentemente, dedicou-se apenas a outros gêneros, dramaturgia e prosa. Foi quando suscitou espanto e admiração com Fluxo-Floema, de 1970, seguidos por Qadós, e Tu não te moves de ti, manifestações plenas da blasfemadora, da escritora disposta a transpor os limites. Abre Fluxo-Floema deste modo:

chega, chega, morte à palavra desses anêmicos do século, esses enrolados que se dizem com Deus, Deus é esse ferro frio agora na tua mão, quente no peito do teu inimigo, Deus é essa bala, olhem bem, Deus é um fogo que vai queimar essas gargantas brancas, Deus é tu mesmo, homem, tu é que vais dispor do outro que te engole, e quem é que te engole, homem? 

A devota às avessas. Apreciadora declarada de Georges Bataille. Contrastes. Ou era isso que ela anunciava, no “Exercício nº 1” de Exercícios para uma ideia, de 1967? Nestes versos:

Se permitires
Traço nesta lousa
O que em mim se faz
E não repousa:
Uma Ideia de Deus.

“Ideia de Deus” que iria ganhar corpo em Amavisse:

Que vertigem, Pai.
Pueril e devasso
No furor da tua víscera
Trituras a cada dia
Meu exíguo espaço 

Ou, no mesmo livro: “Deus, um cavalo de ferro/ Colado à futilidade das alturas”. Criador do mundo e do homem, porém mutante e animalesco: “À carne, aos pelos, à garganta, à língua? A tudo isto te assemelhas?/ […] Hein? À treva te assemelhas?”. E muito mais, desde Fluxo-Floema até Sobre a tua grande face e Estar sendo, ter sido

Ensaístas já se detiveram nesta “Ideia de Deus” por Hilda, desde Leo Gilson Ribeiro, passando por Nelly Novaes Coelho e Eliane Robert Moraes, e incluindo alguma ensaística recente. Desde 1987, ao resenhar Com os meus olhos de cão, havia-a associado ao gnosticismo, a religião estranha que equipara a salvação ao conhecimento e vê o mundo como regido por um mau demiurgo, um deus abominável. Conforme depoimentos de seu amigo Gutemberg Medeiros (consta nas páginas do Instituto Hilda Hilst), aquela observação recebeu a plena anuência de Hilda. Retomei-a em subsequentes ensaios e no capítulo de uma tese. Poderia ter citado a observação de Mircea Eliade — em História das doutrinas e crenças religiosas — de que o dualista radical é quem mais anseia pela unidade.

Reforça tal associação a doutrinas gnósticas o holismo, a busca do conhecimento, o interesse não apenas por filosofia, por religiões, mas pela ciência. Daí sua amizade e diálogo com físicos como Mário Schenberg — comentado em Da poesia — e César Lattes, bem como as experiências no campo de uma paraciência, com as gravações de “vozes dos mortos”, que, na época da sua divulgação, tiveram repercussão. 

Alguma informação circunstancial, sobre seu bom relacionamento com Roberto Piva, outro poeta extraordinário, que a visitou na Casa do Sol: nenhum dos dois estava interessado na criação literária do outro, embora se respeitassem; e as conversas eram sobre discos voadores, ufologia, as gravações de vozes vindas de um aparente vazio e outras paranormalidades.

Hilda enriquece, e muito, o estudo das relações entre autor e obra, tão descartado por formalistas, que ela, aliás, desprezava. Victor Heringer, no posfácio desta edição, fala em “autoconstrução” através de entrevistas, que “desaguou na imagem que hoje se tem de Hilda Hilst”. Por vezes, encarnou a obscena Senhora D. 

A propósito de O caderno rosa de Lori Lamby, exibiu a arte de enganar leitores — e alguns críticos e jornalistas, também. Com frequência, é mostrada a entrevista na qual argumenta que havia preparado essa narrativa para vender bastante, já que os livros anteriores, mesmo apreciados pela crítica, não tinham êxito comercial. 

Indigitava Massao Ohno, o “editor maravilhoso”: “O Massao edita os meus livros, mas não os distribui. Tenho uma tese de que ele os coleciona embaixo da cama. Não me pergunte para quê. Parece que ele não quer que ninguém me leia”. 

Mentira. O jogo da confusão entre autor e obra; do autor personagem de si mesmo, extensão da escrita. Massao não guardava livros debaixo da cama. E Hilda sabia muito bem que O caderno rosa chocaria e enfrentaria dificuldades na recepção e distribuição — Léo Gilson Ribeiro rompeu e outros esfriaram com ela, por causa dessa obra —, e que avançar o sinal daquele jeito não traria resultados comerciais. 

“O Massao edita os meus livros, mas não os distribui. Tenho uma tese de que ele os coleciona embaixo da cama”, brincava Hilda

O paralelo com A bicicleta azul — assim como hoje poderia ser com Cinquenta tons de cinza — é despropositado: são narrativas com cenas “fortes”, porém relatadas no modo mais rebuscado. Nada a ver com o conjunto de barbaridades narradas por aquela menininha, no tom mais plausivelmente infantil ­— e é isso, o relato mimetizar a voz da criança, o que confere força ao livro e choca, conforme já observado por bons críticos. A pornografia se confunde com a polissemia. A determinada altura, quando Lori Lamby fala em língua, não se sabe mais qual é o referente, do que a autora está tratando.

Já me diverti, em palestras, tratando de Lori Lamby, lendo passagens edificantes e comentando-as, até chegar ao final, para poder flagrar alguém do público soltar um suspiro de alívio e observar: “Ah, então a garota inventou tudo isso…!”. Como se fizesse alguma diferença. Como se a história de uma menininha satisfazendo sexualmente um “tio” e outros parceiros deixasse de ser corrosiva por ela, protagonista do relato, haver “inventado” aquilo para, supostamente, agradar o editor de seu pai. Como se, em um ou outro caso, não estivéssemos igualmente na esfera do simbólico.

Em primeira instância, Lori Lamby é sátira do mercado editorial (sei quem foi o editor preocupado com a pouca vendagem dos livros do pai de Lori, dos livros da própria Hilda, enxergo-o nas entrelinhas, apesar de ela abster-se de caracterizá-lo). Hilda preparou uma armadilha para leitores ingênuos. Caíram nela, também, alguns leitores cultos. O tempo todo, estamos no campo da metalinguagem — e a paródia não é outra coisa senão isso.

Voltando à questão de como ler Hilda Hilst: talvez o melhor acesso ainda seja através das edições originais, especialmente aquelas, objetos com valor autônomo, preparadas por Massao Ohno. Já escrevi sobre essa relação entre um editor e uma autora. Foi a poeta a quem ele mais publicou; e com quem houve inversão cronológica, pois não publicou a estreante, porém a autora na plenitude criativa. A fotografia de Massao e Hilda juntos, em Cadernos de Literatura do Instituto Moreira Salles e nas páginas do Instituto Hilda Hilst, essa fotografia me comove até hoje.

Mercado paralelo

Ótimo saírem poesias completas e, logo mais, prosas completas; excelente haver os volumes da editora Globo, que continuam a circular no mercado paralelo; e, a preços mais elevados, as de Massao Ohno e outras primeiras edições. Da morte. Odes mínimas: o formato anormalmente grande, os breves poemas, as aquarelas da própria Hilda e muito espaço em branco — claridade. O que Millôr Fernandes e Jaguar fizeram para O caderno rosa de Lori Lamby e Bufólicas, o traço propositadamente infantilizado acentuando a irreverência do texto. Tudo isso, felizmente, disponível no acervo constituído pelo Instituto Hilda Hilst e em boas bibliotecas públicas, como a Mário de Andrade, em São Paulo. 

A publicação da poesia reunida possibilita a visão de conjunto e outra escala de circulação. Contudo, cabem observações. Em volumes de obras completas, há dois polos. Um deles, exemplificado pela edição da poesia completa de Manoel de Barros pela LeYa: apenas os poemas, na sequência cronológica, sem mais nada, informação adicional, sinopse biográfica, bibliografia, aparato crítico. Outro, as edições críticas, das quais um exemplo são aquelas da Bibliothèque de la Pléiade, da Gallimard: sobram comentários, notas, sinopses biográficas, bibliografias, documentação. 

Algo próximo, no Brasil, são as edições de obras completas da Nova Aguilar: trabalhos de equipe que efetivamente apresentam o autor publicado. A organizadora desta edição, Leusa Araujo, é uma conhecedora de Hilda — além de ter sido sua amiga, colaborou na preparação de edições anteriores, e procedeu bem ao reproduzir as aquarelas a partir das quais foram escritas as Odes mínimas, além de apontar variantes e adicionar inéditos. Mas Da poesia deveria trazer uma sinopse biográfica melhor e bibliografia mais detalhada, informando com precisão o que ela publicou e quando. E explicações — principalmente sobre haver transformado Amavisse em três livros independentes. 

Nos antigos volumes da Globo há muito mais informação. Se houvesse sido negociada sua transferência, de uma editora para outra, o beneficiado seria o leitor. Hilda, hoje, é não apenas lida, porém estudada; a quantidade de artigos, ensaios, dissertações, teses e capítulos se constitui em mediação capaz de enriquecer a leitura e instigar novos leitores-pesquisadores. Quem sabe possam ser adicionados ao aguardado volume de prosas. 

Já atualizar a fortuna crítica — quase completa até 2003, nas edições da Globo — é tarefa ciclópica. Algo consta em Da poesia: inclusive, referências à edição dos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles, primorosa e que desempenhou um papel decisivo, com a participação de alguns de seus colaboradores. Mas é pouco.  E deveria constar menção, entre outros, a Léo Gilson Ribeiro, crítico idiossincrático, mas que, ao equipará-la a Clarice Lispector e Guimarães Rosa quando saiu Fluxo-Floema, promoveu uma virada ou salto em sua recepção. 

Hoje, vê-se que ele sabia o que estava dizendo.  

Quem escreveu esse texto

Claudio Willer

Poeta, escreveu Manifestos 1964-2010 (Azougue).

Matéria publicada na edição impressa #10 abri.2018 em junho de 2018.