Poesia,

Poeta do presente

Em diálogo com Joyce, Baudelaire, Pessoa e Drummond, Paulo Henriques Britto une ironia e rigor da forma em nova coletânea

01dez2022 | Edição #64

Há pouco mais de três décadas, toda vez que vem a público um novo livro de poemas de Paulo Henriques Britto, um certo estoque crítico é despachado apontando elementos temáticos e de estilo que, não sem engano, permeiam as obras em curso do poeta. Tal despacho crítico, convenhamos, errado nunca está, e, não seria eu, alecrim que doura a pílula, que escaparia dessas zonas de consumo. No oitavo livro de poemas do escritor e tradutor de clássicos poetas norte-americanos, estão ali, de fato, a linguagem mesclada, empenhada em zonas de coloquialidade mixada a um vocabulário ligeiramente elevado; o exercício de metalinguagem, eventualmente refratário aos planos comuníssimos do escrever sobre escrever (e não parece mais haver futuro aqui); além dos diálogos com outros autores — alguns particularmente mais marcados e evidentes, outros mais laterais, que podem ser encontrados nos escaninhos dos modernismos brasileiro e português, bem como da anglofonia. Há também o elemento formal — sempre lembrado com vernizes de precisão quando do uso do soneto — e o aspecto de desencanto, modulado pela ironia, junto das nuances de derrisão dos monumentos sentimentais do lirismo empacotado — e quase sempre com doses de algum humor.


Fim de verão, de Paulo Henriques Britto

Em grande parte, arrolar algumas das características mais presentes nas obras do autor — e encontramos bastante delas em Fim de verão — é a maneira de tentar perceber como Britto se encaixa dentro do circuito da poesia brasileira contemporânea. O recorte geracional, em amplo aspecto deficiente como modelo historiográfico na leitura de poesia, não costuma dar conta da categorização de maneira precisa. Se se toma o aspecto etarista, assistimos ao naufrágio certo, uma vez que o seu ano de nascimento, por exemplo, coincide com o de Chacal, e as características de composição de Britto não o catalogam dentro da geração marginal do Rio de Janeiro. Tomar sua estreia, Liturgia da matéria (1983), bem como seu segundo livro, Mínima lírica (1989), o coloca em uma posição de espaço a ser preenchido, dado que o período ainda é percebido de maneira difusa. Há uma rotina, quase consensual, em colocá-lo entre os poetas da geração de 90 — formulação algo forçada, considerando-se que sua única obra publicada nesse recorte de tempo, Trovar claro, saiu em 1997, quase na passagem do fim do milênio passado. Entrando nos anos 2000, e de lá pra cá já são duas décadas de atividade, Britto parece vir atravessando bem as cordilheiras dos diálogos intergeracionais, sem recair em anacronismos ou tiques de época, muito por manter-se como voz de um sujeito do presente imediato, apesar de parecer frequentar, por via da serialidade, algumas repetições temáticas e também por manter modos recorrentes de composição nas formas que emprega, embora crie variedades de modulação.

Tudo que foi dito até aqui nos ampara como paráfrase alargada do que “Anacruse”, poema de abertura de Fim de verão, diz melhor e com muito menos. Em seguida, a modo de endereçamento, sucede-se uma série de dez sonetos intitulada “Ao leitor”, cuja primeira impressão de referência nos leva a Charles Baudelaire — “Leia até rebentar, leitor amigo” — como que desabrochando outras flores do mal. Contudo são notáveis outras dimensões de diálogo, com Fernando Pessoa, talvez, “com o dom da palavra (a trapaceira)”, ou derruindo os sentidos místicos de San Juan de la Cruz de maneira mais direta “numa ‘noche oscura del alma’ (ou ‘mente’/ pra aliviar o peso asfixiante/ de dois milênios de neura cristã)”, também atravessando Camões/Drummond — “eu que não caio mais nesta/ paródia da máquina do mundo”, passando ainda, mais à frente, por Robert Frost em “The road not taken”, um soneto tetrassilábico estranhíssimo, o que me leva a uma formulação do seguinte problema: seria, ainda, o soneto uma forma fixa, se é que já foi em algum momento?

Britto manobra, de modo mais que eficiente, um tanto de modelos, mais e menos canônicos, dessa modalidade de poema, o soneto. Seja o de formato petrarquiano, seja o spenseriano, passando também por sonetilhos realizados em arte menor, configurando toda sorte de experimentações por dentro dos modelos mais sólidos. Embora a feição prevalente do decassílabo heroico seja a tônica de Britto, há um sem número de nuançamentos dados por certas irregularidades, o que faz com que os versos medidos não pareçam tão martelados e soem como fala corrente, como no poema que abre a série “Água de rosas”, em seu primeiro terceto: “Perguntar não ofende: a transação/ é das que implicam vantagens e perdas/ pros dois, ou só um se dá bem no fim?” — em que seguem-se, sucessivamente, um martelo agalopado, uma gaita galega e o último verso bastante irregular, contudo funcionando perfeitamente como lance prosódico e feito língua viva.

Quadras rimadas

Neste livro mais recente de Britto, algo me chama atenção de modo mais marcante. Um uso sistemático de quadras rimadas, quase sempre em arte-menor, com pequenas variantes entre o uso da redondilha maior e do octassílabo. A presença de Emily Dickinson comparece coalhando, de modo orbital, todo um sistema na máquina de sentidos que ali se opera. Não apenas pela epígrafe estampada, nem pela ótima intervenção tradutória em “Três traduções e treze variações sobre um poema de Emily Dickinson”, mas por renovar sentido no uso da quadra, de feição tão popular, como instância de ideia, assim como a poeta estadunidense o fez com o metro de balada, em seu tempo. Quer dizer, uma certa persecução que permuta as questões entre ser e estar no mundo, assim como o clique de um niilismo, até a última hora do último homem, e encontram, ao menos aqui, uma pequena bússola silogística como na quadra inicial de “Post mortem”, que vai se sucedendo nas quatro estrofes seguintes com o despedaçamento da proposição inicial, fechando cada ciclo: “As partes se afastam do todo./ Há um clima de suspeita./ Devia haver um outro modo,/ mas agora a coisa está feita.”

Em algum lugar do Finnegans Wake, James Joyce sentencia que o texto “destina-se a esse leitor ideal que sofre de uma insônia ideal”; pois bem, chegar ao Fim de verão também é atestar que temos vivido, nos últimos anos, o pesadelo de tempos insones e “não, não pode ser/ mais difícil que um dos muitos começos/ a que se conseguiu sobreviver/ quase inteiro, sem maiores tropeços.”, embora a cutilada de Paulo Henriques Britto alcance o alvo, tão precisamente, mas tão precisamente que se instala, em aparência, no mesmo lugar, gerando a sensação de que “A dor continua/ e ainda lateja”, não sei, não, mas a mim me parece que também dessa vez Britto girou a faca e nos pregou mais uma peça:

Toda vida é provisória,
todo poema é fragmento.
Cada dia, cada hora,
cada verso é só um momento
de alguma totalidade
que você sequer concebe.
Viva e escreva e não se abale.
Você não é o que você escreve.

Pouca coisa soaria tão solar, em Fim de verão, quanto enganar-se com o sujeito em seu poema.

Quem escreveu esse texto

André Capilé

Poeta, tradutor e professor, é coautor do recém-lançado Uma a outra Tempestade: tradução-Exu (Relicário)

Matéria publicada na edição impressa #64 em outubro de 2022.