Música,

Uma odisseia roqueira

Romance de estreia do lendário guitarrista do grupo de rock The Who tem toque de realismo mágico britânico com aura junkie

20ago2021 | Edição #49

Frank Zappa, o guitarrista cujos bigodes e mente ferina remetem a Groucho Marx, dizia que “um repórter de rock é um jornalista que não sabe escrever, entrevistando gente que não sabe falar, para pessoas que não sabem ler”. Referia-se à folclórica falta de lustro intelectual de roqueiros e amantes de rock em geral.

No filme Quase famosos, alguém acometido de um inoportuno insight filosófico se questiona a certa altura sobre o que vem a ser o rock afinal de contas, ao que o interlocutor retruca: “Sei lá. Talvez Pete Townshend consiga responder a essa pergunta”. Pete Townshend com certeza tem uma boa teoria a respeito.

O lendário guitarrista inglês e principal compositor do The Who se destaca desde o início da década de 60 por sua excelência, virulência e originalidade. As óperas-rock Tommy e Quadrophenia são eventos seminais na história da música pop, e o The Who é o grupo que previu o punk e outras manifestações viscerais do rock e da arte contemporânea. Ou você acha que aquele negócio de destruir guitarras no fim do show era só testosterona adolescente saindo pelo ladrão? Pura arte conceitual.

As alucinações auditivas constituem a parte literariamente mais ousada do romance, um feito comparável a espatifar guitarras

No entanto, escrever libretos de óperas-rock e possuir excepcional talento para compor canções e tocar guitarra não garante sucesso literário. Embora tenha escrito um livro de contos há décadas e abandonado alguns projetos de romance ao longo da carreira e vida agitadas, o incensado roqueiro ainda não havia testado sua capacidade de manter um livro em pé (e nada indica que ele esteja dando a mínima para isso). Mas motivos assim cercam de expectativa a publicação do romance de estreia de Pete Townshend, A era da ansiedade.

Para aqueles que, como eu, são fãs do autor de “My Generation”, “Pinball Wizard”, “Baba O’Riley” e outras dezenas de obras-primas do rock, a boa notícia: A era da ansiedade é um ótimo romance. É também um livro intrigante, e não porque foi escrito por um guitarrista genial, mas por ter sido concebido por um autor imaginativo que ousa, por exemplo, dotar de alucinações auditivas alguns de seus personagens.


 

É notório que Townshend, devido a anos de abuso sonoro, sofre de alguns problemas auditivos. Até aí nada de mais, Beethoven compôs boa parte de sua obra no mais absoluto silêncio. Mas pela leitura do romance é tentador presumir que seu autor já tenha experimentado algumas dessas alucinações pessoalmente, pois as descreve com muita intimidade e conhecimento de causa. Alucinações que se mostram reveladoras e constituem a parte literariamente mais ousada do romance, um feito comparável a espatifar guitarras. É notável que o guitarrista tenha conseguido narrar em letras silenciosas as mais ruidosas e alucinadas experiências sonoras e feito com que essa patologia proporcione uma metáfora lúcida para pensar e refletir a arte em nossa época.

Fábula roqueira

A era da ansiedade é narrado por Louis Doxtader, um inglês de 66 anos, marchand de arte outsider e usuário recuperado de drogas pesadas. A história, uma fábula roqueira com indisfarçável parentesco com tragédias gregas, se passa entre 1996 e 2012 e foca principalmente a trajetória de Walter Watts, afilhado de Louis. Walter é um jovem roqueiro que começa a fazer sucesso no circuito do pub rock, mas, acometido das tais alucinações auditivas, passa a duvidar de sua sanidade mental. Aconselhado por Louis — que enxerga nas alucinações de Walter não uma doença, mas a expressão visceral de seu talento criativo —, Walter conhece Paul Jackson, pseudônimo de Nikolai Andreievitch, velho astro de rock dos anos 60 que abandonou a carreira no auge, em plena filmagem de um longa-metragem, justamente por obedecer a alucinações auditivas que lhe sugeriram alçar-se seminu num voo abismo abaixo.

Sanidade sacrificada

Depois de anos de isolamento radical, Jackson, apesar de louco, acaba por se destacar como um artista gráfico de sucesso, tendo como agente ninguém menos que o próprio Louis Doxtader. Este acredita que se Walter, como Jackson, conseguir transformar suas alucinações em música, ele conquistará um surpreendente patamar em sua carreira, encontrando sua verdadeira vocação artística, ainda que para isso sua sanidade tenha de ser sacrificada. Do confronto entre as situações do velho e do novo astro de rock surgem vários questionamentos e reflexões sobre o fazer artístico e a brutal pressão (e sedução) do mercado consumidor. Quanto Townshend coloca ali de suas próprias experiências, conflitos, traumas e loucuras é algo que podemos apenas supor.

É possível enxergar nas mulheres da narrativa um poder premonitório que evoca o das bruxas de ‘Macbeth’, de Shakespeare

Logo no início do romance, somos informados por Louis de que o que o leva a escrever é um segredo, e também de como uma atitude de que se arrepende gerou acontecimentos maravilhosos. É uma premissa instigante, que nos prende à narrativa do marchand enquanto ele desfila os acontecimentos que cercam as vidas de Paul, Walter e dele próprio, e das poderosas mulheres que motivam esses personagens e fazem girar a engrenagem dramática.

As mulheres, aliás, têm uma função preponderante na narrativa de Pete Townshend. Não obstante uma sutil misoginia de Louis Doxtader, é possível enxergar em Maud — esposa de Jackson —, nas irmãs irlandesas Siobhan e Selena e em Floss, a amazona (todas em algum momento envolvidas com Walter, Louis ou Jackson), um poder premonitório que evoca o das weird sisters de Shakespeare, as bruxas que preveem o destino e a tragédia de Macbeth.

A enigmática Maud, as belas e provocativas irmãs irlandesas Siobhan e Selena (com seu trágico passado) e a etérea Floss determinam os acontecimentos, assim como Rain, a filha um tanto sorumbática de Louis. Selena se coloca algumas vezes como narradora, assumindo sorrateiramente o computador de Louis quando ele sai para passear com o cachorro. Selena, de todas as personagens mulheres, é a que mais incorpora o aspecto mágico e ameaçador (para os homens) do fascínio feminino. É ela quem se define como uma curadora de almas com a capacidade de ver anjos pairando em pubs e shows de rock. É ela também que ousou ainda criança assassinar o próprio pai por este molestar a irmã mais velha, a intelectual e poética Siobhan.

A história se desenrola com fatos surpreendentes que revelam uma refinada e improvável teia do destino, e é nisso que essa odisseia roqueira se aproxima de uma tragédia grega. Os acontecimentos se precipitam para um gran finale no Hyde Park de Londres, onde Walter vai fazer um show com a música que compôs com suas alucinações sonoras, e ali também saberemos com detalhes qual é o segredo de Louis, do qual se arrepende, mas que gerou acontecimentos maravilhosos.

A trama de A era da ansiedade está literalmente repleta de sexo, drogas e rock’n’roll — não da maneira óbvia e hedonista que se poderia esperar de um livro escrito por um astro de rock, mas carregada de crítica e olhar agudo e reflexivo. Pete Townshend conduz a narrativa com a precisão de um escritor experiente. Vislumbra-se em alguns trechos a influência de seus conterrâneos contemporâneos, os infalíveis McEwan e Amis da vida, mas, na maior parte das páginas, ele nos surpreende com uma escrita original, dotada de um toque inédito de realismo mágico britânico com aura junkie.

Dostoiévski

Chama a atenção também como Townshend descreve algumas cenas e diálogos com a embocadura (para usar um termo musical) de dramaturgo. Talvez a experiência com libretos de óperas-rock tenha determinado esse traço de estilo, que em nada o desmerece como romancista. Dostoiévski também monta muitas de suas cenas com o olhar de um autor de teatro, e se há alguém no rock que podemos comparar a Dostoiévski é Pete Townshend.

Em um breve posfácio, o guitarrista deixa claro que ele não é Louis Doxtader e que, por causa de uma leve oscilação da Terra em seu eixo, até os mais indiferentes de nós estão um pouco ansiosos. Ele afirma que a história tortuosa que acaba de narrar pode um dia virar a base de uma ópera. E reafirma a fé em nossa espécie, nos lembrando que “não precisamos queimar bruxas”. Não só não precisamos queimá-las, Pete, como devemos ouvi-las.

Quem escreveu esse texto

Tony Bellotto

Mu?sico e escritor, publicou Dom (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #49 em julho de 2021.