Música,

Um nada brasileiro

Livros sobre Canhoto, Garoto e Raphael Rabello evidenciam a centralidade do violão na história da música popular brasileira

23nov2018 | Edição #14 ago.2018

O compositor francês Darius Milhaud anotou em seu livro de memórias uma passagem reveladora sobre certa singularidade da música brasileira. A respeito do que se tocava na cidade do Rio de Janeiro no início do século passado, ocasião em que esteve no Brasil, registrou a seguinte impressão: “[…] os ritmos dessa música popular me intrigavam e fascinavam. Havia na sincopa uma imperceptível suspensão, uma respiração displicente, uma pequena parada que me era muito difícil de captar”.

Milhaud vai direto ao ponto. A sincopa, “esse ‘pequeno nada’ tipicamente brasileiro”, como ele define, surge como um fenômeno ao mesmo tempo singular e recorrente no conjunto dos gêneros dançantes praticados nas três Américas. Durante o processo de adaptação das danças europeias ao Novo Mundo, principalmente a polca e a valsa, ocorreu um processo de deslocamento rítmico comum que resultou na criação de novos gêneros musicais.

O ragtime na América do Norte, o danzón na América Central e o maxixe, o choro e os tangos brasileiro e argentino no Cone Sul são as mais famosas variações dos novos gêneros americanos da costa atlântica. Todos sob o signo da sincopa, embora em diferentes modalidades.

A primeira hipótese sobre o fenômeno surgiu também como um fato recorrente: a acentuação do tempo fraco da música dos gêneros dançantes europeus, cuja denominação técnica é a sincopa, foi invariavelmente atribuída à influência da cultura musical negra, ou mais genericamente africana, durante o processo de colonização dessas regiões. 

No caso brasileiro, esse tipo de interpretação se fundiu com o desejo da caracterização de uma identidade musical nacional, a partir da década de 1920. No entanto, a ideia de identidade não dá conta dos modos de manifestação complexos da música desse período, se pensarmos que é um termo que tem por núcleo a permanência do mesmo, aquilo que se reconhece por continuar igual. A singularidade característica, por exemplo, da obra de compositores como Henrique Alves de Mesquita (1830-1906), Ernesto Nazareth (1863-1934) e Chiquinha Gonzaga (1847-1935) mostra como o processo de sincopação trouxe luz própria para um percurso marcado por contradições e descontinuidades.

A polca adquiriu sotaque diferente por aqui numa trama complexa de mediações entre as chamadas culturas erudita e popular. Assim, a ideia de singularidade traz a marca do que é diferente, peculiar, sem carregar demais no peso “genético” da identidade, que privilegia mais o estável do que o improvável. 

Indo além, a noção de singularidade carrega consigo ao mesmo tempo a definição de mutabilidade e a disposição para a transformação, o que parece descrever com mais precisão o espaço contraditório e complexo da cultura musical brasileira do que o conceito de identidade, o qual costuma supor uma essência primordial originadora da cultura.

Piano e violão

A observação de Milhaud se deu num contexto em que essa “música popular” se difundia de dois modos: pelas partituras de composições de autores como Mesquita, Nazareth e Chiquinha executadas ao piano em residências mais abastadas, teatros de variedades e salas de cinema ou pela performance improvisada (sem partitura) de muitos anônimos em festas populares, barbearias ou quintais suburbanos executada por conjuntos chamados de “pau e corda” (flauta, violão e cavaquinho). 

O repertório era o mesmo. Polcas amaxixadas e suas variantes. Mas no momento em que esses maxixes tocados nas ruas ganhavam a forma impressa em partituras, a sincopa se congelava pela escrita musical e as suas variações espontâneas, seus “pequenos nadas”, se perdiam. 

Portanto, mais do que falar em cultura erudita e popular neste inicio do século 20, parece-me mais acertado pensar em cultura musical escrita e não escrita. Na música escrita, o piano era central. Toda tradição, gramática e clichês do repertório europeu clássico/romântico escorriam nas teclas de Nazareth e Chiquinha, com mais ou menos expressividade e invenção, a depender de cada singularidade, em fricção com os ritmos sincopados da rua. 

Já na música não escrita, o violão era marginal. Acompanhava nas rodas de choro ou nas serestas a flauta ou o canto modinheiro. Mais do que isso, do ponto de vista social, o violão era estigmatizado como sinônimo de vadiagem por uma elite fluminense imperial (e depois republicana) que desejava “civilizar” o Brasil a qualquer custo. Lembremos de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, cujo triste fim se construiu pela tensão entre o seu ufanismo, em que tocar violão e falar tupi-guarani lhe parecia o mais correto, e a postura arrivista e cosmopolita da elite da belle époque tropical.

Do ponto de vista social, o violão era estigmatizado como sinônimo de vadiagem por uma elite que desejava ‘civilizar’ o Brasil

Canhoto, Luís Américo Jacomino (1889-1928), surge neste cenário, cuja centralidade era o Rio de Janeiro, duplamente periférico. Primeiro, por ser paulistano. Segundo, por ser um violonista e não um pianista. Tocava o violão invertido (sem inverter as cordas), daí a alcunha de Canhoto. 

A singularidade do seu percurso é vertiginosa como o crescimento da cidade de São Paulo: nasce no centro da pequena vila provinciana, na rua do Carmo, no final do século 19; aprende a tocar sozinho; começa a atuar como músico profissional em circos, cafés, teatros e cinemas até estrear como solista em 1925 no Teatro Municipal de São Paulo, quando a cidade já se configurava como grande metrópole, surgida como um cogumelo após a chuva, em menos de uma década. 

Canhoto poderia ter sido o protagonista do título do estudo do historiador Nicolau Sevcenko sobre esse período — a própria encarnação de um Orfeu extático na metrópole (Companhia das Letras, 1992).

Ora, se acreditássemos que a história se constrói numa linha do tempo, Canhoto seria o marco zero. A partir dele traçaríamos uma linha evolutiva do violão no Brasil povoada por virtuoses únicos como João Pernambuco, Villa-Lobos, Armandinho Neves, Dilermando Reis, Aimoré, Rago, Garoto e Raphael Rabello, sem falar em outras ramificações como João Gilberto e Baden Powell. Mas não. A história é sempre uma construção mais complexa, errática e surpreendente.

Biografia, memória e história

Os livros Raphael Rabello: o violão em erupção, de Lucas Nobile, Choros de Garoto, organizado por Jorge Mello, Henrique Gomide e Domingos Teixeira e Abismo de rosas: vida e obra de Canhoto, de Sérgio Estephan, são mais do que uma feliz coincidência editorial que coloca o violão no centro do debate dos estudos musicais no Brasil. 

Há dez ou vinte anos existiam pouquíssimos trabalhos editados sobre música por aqui. Hoje já temos um número relativamente maior e significativo. Resultado, sem dúvida, da continuada atividade da crítica musical jornalística e do crescente interesse acadêmico e de institutos culturais pelo tema. 

A natureza desses trabalhos é bem variada e, vistos de longe, formam um painel que resume as principais tendências dos estudos musicais. Nobile traça uma clássica biografia narrativa do mito moderno do violão de sete cordas, Raphael Rabello (1962-95) — com direito a uma excelente discografia no final do volume.

Estephan apresenta um rigoroso estudo acadêmico em que a análise musical e o percurso biográfico de Canhoto (1889-1928) em seu contexto histórico resultam em interpretações do tecido cultural e político de São Paulo, do Brasil e da América Latina. Ainda traz partituras editadas com arranjos para violão solo e cifras.

Por último, o IMS lança mais um volume primoroso na forma de um luxuoso caderno de partituras de Garoto (1915-55) — com papel e impressão fotográfica de qualidade excepcionais, e sintético e eficiente resumo biográfico acompanhado de rigorosos comentários sobre as fontes, transcrições e processos de estabelecimento do texto final das partituras. 

Criada no ambiente da musicologia europeia do século 19, a biografia contribuiu para a construção do mito do gênio musical que consagrou a “linha evolutiva” da música ocidental — Bach, Mozart, Beethoven, Chopin, Wagner etc. No Brasil, as biografias da música popular tiveram com Almirante (No tempo de Noel Rosa, editado em 1963 pela Francisco Alves e reeditado pela Sonora Edições em 2013) um ponto de inflexão relevante, pois o seu interesse em estabelecer certa cronologia da música popular brasileira se concretizou em seus programas na Rádio Nacional e, depois, pela incorporação do seu acervo de registros fonográficos para a formação do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, em 1965. 

Mas foi com o prêmio “Lúcio Rangel de monografias”, lançado pela Funarte na década de 1970, que as biografias da música brasileira ganharam volume com livros sobre Pixinguinha, Assis Valente, Ismael Silva, Cartola, Garoto, Patápio Silva, João Pernambuco, entre outros. 

Herdeiro desta tradição, o jornalista Ruy Castro consagrou-se biógrafo da bossa nova e de Carmen Miranda. O também jornalista Lucas Nobile segue esta linhagem. Em geral, esses trabalhos se fundamentam em entrevistas procurando sempre a testemunha ocular da história do biografado. O risco da criação de um percurso teleológico, e muitas vezes mecânico, é sempre grande. No caso particular de Nobile, o autor conseguiu embaralhar a linha cronológica da vida de Rabello a partir de núcleos temáticos que, pela qualidade da narrativa, apesar de certas repetições, trouxe vivacidade para o gênero.

José Ramos Tinhorão é certamente o mais eloquente historiador da música brasileira. Jornalista e crítico musical, trabalhou com a história fora do rigor metodológico do ambiente dos historiadores de ofício, mas acumulou um impressionante acervo que serviu de base para as suas publicações. 

Oscilando entre o memorialista e o historiador, Tinhorão propôs certas generalizações de fundo sociológico pioneiras sobre a música brasileira. Às vezes, deve-se dizer, fez isso com a mão pesada de suas orientações ideológicas. Mas abriu portas para os estudos acadêmicos que fazemos hoje em dia. O trabalho de Estephan situa-se na tradição da história cultural, campo que vem ampliando e diversificando suas fontes através da incorporação de “novos” objetos como a música, até então restrita aos musicólogos de formação positivista.

A pesquisa sobre Canhoto foi publicada dez anos depois de sua finalização como tese de doutorado (2007). Rigorosa, chega um pouco tarde para os especialistas. Alguns temas já foram tratados com melhor síntese enquanto o seu trabalho aguardava publicação. Isso não tira o mérito e a importância dos excelentes resultados apresentados. Apenas nos lembra que deveria ter sido editado antes.

Por incrível que pareça, não temos no Brasil edições definitivas dos nossos principais compositores: Villa-Lobos, Francisco Mignoni, Camargo Guarnieri. No campo da chamada música popular, Tom Jobim, por conta da sua obsessão e prestígio, conseguiu publicar sua obra sob o título Cancioneiro Jobim (Jobim Music, 2000). Edições integrais no padrão Urtext ou edições críticas ainda são novidades por aqui. 

Não temos no Brasil edições definitivas dos nossos principais compositores: Villa-Lobos, Francisco Mignoni, Camargo Guarnieri

Neste sentido, o volume dos Choros de Garoto é motivo de festa. Não só pelo conteúdo, mas pela qualidade da edição. O violonista Paulo Belinatti, que já havia publicado e gravado a obra de Garoto, ou Aníbal Augusto Sardinha, por uma editora norte-americana (Guitar Solo Publications, GSP), escreveu o prefácio desta publicação. Os choros são as suas peças amaxixadas, cuja sincopas estão relacionadas diretamente com aquelas que impressionaram Darius Milhaud no começo desta resenha. Para além do prazer de ter nas mãos essas peças muito bem escritas e editadas, elas se tornaram agora importantes fontes para futuros pesquisadores. 

Violão brasileiro no século 20

A leitura sequenciada desses três livros faz pensar sobre a centralidade que o violão adquiriu ao longo do século 20 na cultura musical brasileira. Centralidade conquistada por caminhos singulares. 

O paulista Canhoto, no começo do século, trouxe o violão para o lugar de instrumento solista a partir de uma técnica própria (tocando o instrumento invertido). Compunha e interpretava valsas e polcas amaxixadas no momento em que nascia a indústria fonográfica no Brasil. Circulou pelo repertório da música escrita (erudita), mesmo sendo um autodidata, e estabeleceu relações com o repertório violonístico latino-americano.

O também paulista Garoto, no meio do século, ao mesmo tempo em que ele se criava no ambiente do disco e do rádio colaborou para a concepção da linguagem dos “regionais” que acompanhavam os cantores do rádio (acompanhou Carmen Miranda com o Bando da Lua na América do Norte). Inventou o violão tenor, além de dominar todos os instrumentos de corda. Interpretou como solista peças do repertório da música de concerto de Radamés Gnattali, além de Chopin e outros. Compôs um clássico da música popular, “Gente humilde”. Sua abordagem harmônica e singularidade de escrita abriram caminhos para João Gilberto e Baden Powell. 

O fluminense Rabello, já no final do século, trouxe o tradicional violão sete cordas do choro para o centro do palco do mundo pop da música brasileira — sua dupla de violão e voz com Ney Matogrosso atingiu vendagens inimagináveis para um violonista. Morreu jovem e viveu o fim da vida como um rockstar.

No meio disso tudo a sincopa. Uma imperceptível suspensão. Uma respiração displicente. Enfim, um pequeno nada tipicamente brasileiro. 

Quem escreveu esse texto

Cacá Machado

É autor de O enigma célebre: ambição e vocação de Ernesto Nazareth (IMS) e do CD/LP eslavosamba (YB Music/Circus).

Matéria publicada na edição impressa #14 ago.2018 em agosto de 2018.