Moda,

O ensaio que nunca saiu de moda

Ao costurar a crítica literária às ciências sociais, Gilda de Mello e Souza mostra como as roupas acentuam divisões de gêneros e classes

01jun2020 | Edição #34 jun.2020

A reedição no final do ano passado de O espírito das roupas: a moda no século dezenove — ensaio inovador de Gilda de Mello e Souza publicado originalmente em 1950 e cuja edição se encontrava esgotada — vem em momento no qual o tema da moda deixou definitivamente de ser um tabu para as ciências sociais e a crítica literária, as duas principais áreas que o ensaio alcança, embora não as únicas. E também celebra o centenário da autora, que nasceu em 1919 na cidade de São Paulo, onde permaneceu até sua morte, em 2005, e com a qual era profundamente identificada — além de ter sido professora da Universidade de São Paulo (USP) por décadas, seu livro mais conhecido, O tupi e o alaúde, é referência obrigatória para os estudiosos de Macunaína.

Nas últimas duas décadas, de fato, o tema da moda passou a ocupar lugar de destaque no debate entre alguns dos principais pensadores do século 21 em suas áreas de domínio, da crítica literária à história da arte, da antropologia à filosofia, mas o assunto estava longe de ser moda nas ciências humanas em 1950. 

De Boris Groys e Giorgio Agamben até Emanuele Coccia — que por sua vez recorrem a certa tradição que passa por Walter Benjamin, Roland Barthes e Georg Simmel, este último um sociólogo que ainda no século 19 escreveu um conjunto de textos fundacionais sobre o tema, e com quem o trabalho de Gilda de Mello e Souza já dialogava —, são vários os autores atuais que trataram do assunto na tentativa de entender questões de diferentes alcances e procedências. O famoso livro de Barthes sobre o assunto, O sistema da moda, foi publicado apenas em 1967. 

Entre os mais recentes, Agamben, por exemplo, em Nudez (Autêntica), ao fazer uma espécie de teologia do vestuário, nos mostra como a nudez em nossa cultura ainda é inseparável de uma assinatura teológica — afinal é depois de cometer o pecado original que Adão e Eva passam a cobrir o seu próprio corpo. Já Coccia, em seu excelente A vida sensível (Cultura e Barbárie), busca explicar a noção de sensível a partir de certa antropologia, enquanto questiona o significado profundo de portar roupas e de vesti-las — o que define, a rigor, o modo como concebemos o nosso corpo e a nossa sensibilidade. 

No entanto, quando Gilda de Mello se aventurou a escrever sua tese de doutorado na própria usp, sob orientação de Roger Bastide, a moda era um tema sem muita tradição e importância, salvo raríssimas exceções, sobretudo no Brasil. Décadas depois, em 1987, o ensaio saiu pela primeira vez em forma de livro e, na ocasião, a própria autora referiu-se a sua tese como um “desvio”, notando ainda que o tema talvez “tenha parecido fútil a muita gente”. E pareceu, de fato. 

Por outro lado, ele também foi recebido com entusiasmo em alguns meios, conforme comenta Alexandre Eulálio no prefácio à reedição, ao lembrar da euforia de Augusto Meyer com tal trabalho, “que julgava fora dos parâmetros do nosso ensaísmo, fosse pela originalidade da temática desenvolvida, fosse pela qualidade, equilíbrio e elegância do discurso”.

A moda funcionaria como meio de expressão de ideias e sentimentos, aproximando-a da arte

Dividido em cinco capítulos, o livro de Gilda de Mello confere à moda um tratamento complexo que toma como ponto de partida algumas definições paradoxais, que poderiam ser resumidas em três linhas de raciocínio. Por um lado, a autora entende que através da moda, sobretudo no século 19, se acentuam as divisões de gênero e classe — aliás, uma das hipóteses mais testadas em seu livro —; por outro, seguindo a tradição do pensamento de Simmel, compreende que a moda faz reviver um conflito fundamental entre a necessidade de afirmação do indivíduo e sua participação como membro de determinado grupo; e finalmente, sendo uma linguagem que se traduz em termos simbólicos, a moda funcionaria como meio de expressão tanto de ideias quanto de sentimentos, aproximando-a da arte.

Por isso, Gilda de Mello argumenta que, para entender a moda, não é possível encarar o fenômeno apenas com os olhos do sociólogo ou do psicólogo ou do esteta, e sim combinar diferentes visões, o que de fato ela realiza com rara competência. O passeio por diferentes áreas de domínio é, na verdade, uma das grandes virtudes do ensaio, uma vez que até hoje é uma qualidade rara em nossa tradição ensaística. Essa é uma característica, aliás, que Gilda de Mello explorou e aprofundou ao longo de sua carreira, passando ao largo das especializações, com incursões sobretudo na literatura e nas artes plásticas, mas também na música, no cinema e até na dança, como ilustra seu ensaio sobre o ator e dançarino Fred Astaire, escrito já no fim da vida.

Libertação

 Como indica o subtítulo de O espírito das roupas, o livro se concentra na moda em um período específico, o século 19. Para a autora, o advento da burguesia e da indústria, a ascensão da democracia como sistema político e o surgimento das profissões liberais, entre outros motivos, dão origem a um novo “estilo de vida”, que se reflete e rebate na moda das maneiras mais complexas.

Uma das noções centrais para entender tal processo é a ideia de mobilidade. Gilda de Mello argumenta que a história da moda atesta que a sua evolução é feita da imobilidade para a mobilidade crescente. Essa mobilidade se reflete, ao longo do século em questão, na libertação dos membros, facilitando a movimentação dos braços e das pernas, por exemplo. No século 16, diz a autora, a ideia de movimento estava ausente da moda, na medida em que a pessoa nos passava a impressão de estar “entalada dentro de uma estrutura rígida”.

Curiosamente, é esse mesmo raciocínio que Flávio de Carvalho utilizou em seus artigos sobre moda publicados no jornal Diário de São Paulo,  em 1956, poucos anos depois da tese da autora. Sua hipótese era de que os grandes inventores da moda estavam ligados às classes sociais mais baixas por conta, justamente, da liberdade de movimento. Salvo engano, não há notícia de que o artista tenha conhecido o livro de Gilda de Mello, mas é até provável que conhecesse, já que o ensaio foi publicado pela primeira vez na Revista do Museu Paulista.

Outra originalidade do livro da autora, sobretudo para o campo da crítica literária, consiste no uso de textos ficcionais como fonte para o estudo de certos aspectos da moda, junto ao uso de retratos fotográficos, também fartamente analisados. Tal método confere ao tratamento do assunto uma dinâmica própria, já que a roupa é percebida não de modo estático, como peça de museu, mas em seus diferentes usos, ou seja, “em movimento” — o que ajudaria a entender também a noção de “espírito” estampada no título.

Machado de Assis 

Em suma, se o século 19 poderia ser analisado pela noção de mobilidade, que se refletiria nas intensas mudanças sociais projetadas pela democracia liberal, Machado de Assis é quem irá interpretá-lo da melhor forma na literatura — melhor, inclusive, que Balzac —, por ter inventado um narrador volúvel. Isso significa que a própria linguagem na ficção machadiana madura pode ser comparada à moda, na medida em que ambas circulam, flutuam e não se fixam. 

Gilda de Mello e Souza usa textos ficcionais e retratos fotográficos para perceber a roupa não como peça de museu, mas como algo ‘em movimento’

Mas Gilda de Mello e Souza, embora intua essa invenção machadiana, infelizmente não vai tão longe a ponto de solidificá-la, já que estava presa demais à análise do tema. Essa hipótese é aperfeiçoada por Roberto Schwarz,  quase quarenta anos depois, naquele que se tornou o livro incontornável sobre Machado, Um mestre na periferia do capitalismo, lançado em 1990. O crítico, que chega a mobilizar uma série de metáforas da moda para analisar o procedimento da volubilidade como forma social em Memórias póstumas de Brás Cubas, não chega a citar o livro de Gilda de Mello, embora se lembre dos estudos da autora sobre Mário de Andrade e Di Cavalcanti.

É por esses motivos e por outros que esta resenha não alcança — como a militância feminista pouco convencional da autora, que também poderia ser mais bem compreendida a partir deste livro, que é farto em análises em torno de diferentes culturas femininas — que o ensaio de Gilda de Mello segue tão atual. Como ensina Boris Groys, este é um dos atributos revolucionários ou subversivos da moda: como busca pelo novo, ela está sempre tentando se libertar das imposições normativas do passado, projetando-se em direção ao futuro. Em suma, o que a reedição do livro de Gilda de Mello de Souza atesta é que essa obra nunca saiu de moda.

Quem escreveu esse texto

Victor da Rosa

É crítico literário e co-organizador da antologia 99 poemas de Joan Brossa (Demônio Negro).

Matéria publicada na edição impressa #34 jun.2020 em maio de 2020.