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Um mundo em transição

Patricia Gherovici evoca lado subversivo da psicanálise e abre espaço para um diálogo menos patologizante sobre as identidades trans

01out2024 • Atualizado em: 03out2024 | Edição #86 out
A psicanalista argentina Patricia Gherovici (Andrea Tejeda K./Divulgação)

Mais de uma década depois do lançamento do livro que transformou Patricia Gherovici em um importante nome no campo das discussões sobre psicanálise e gênero, a autora tenta atualizar essas discussões no recém-publicado Transgênero: Lacan e a diferença dos sexos. Esse novo trabalho dá continuidade às ideias apresentadas em Please Select Your Gender: From the Invention of Hysteria to the Democratizing of Transgenderism [Por favor selecione seu gênero: da invenção da histeria à democratização do transgenderismo, sem tradução em português].

A distância temporal entre os dois títulos reflete um mundo em transição: avanços inegáveis na conquista de direitos pela cidadania de pessoas trans; a representação política e midiática mais ampla; e o fortalecimento da despatologização com a desclassificação formal dessas vidas como manifestações de transtornos mentais em importantes manuais diagnósticos. Esses fatores convidam a psicanalista a se relacionar de outro modo com a temática. Para além da suspensão do sufixo “ismo”, quais as novidades do Transgênero de Gherovici?

Não é pacífica a relação entre psicanalistas e pessoas trans. A teoria comumente reivindicada como “subversiva” é responsável por um processo histórico de caçada etiológica às transidentidades. Capturadas por explicações psicanalíticas simplistas, essas vidas foram tuteladas por um saber que as marginaliza em esquemas reducionistas onde ora há pai de menos, ora há mãe demais. O central para essa psicanálise é a premissa de que ser trans é um problema. Por sua vez, à revelia da produção hegemônica de seus colegas psicanalistas, Gherovici articula sem medo de perder seu passe lacaniano possibilidades reparatórias de negociar com a presença trans nos consultórios de análise.

Em diálogo com passagens paradigmáticas de Lacan, que servem de base para interpretações cisnormativas no campo, a autora tenta subverter a leitura feita a partir de um Lacan transfóbico. As intervenções dele são relidas pela autora, que busca fundar uma possibilidade de psicanálise lacaniana não cúmplice de uma essencialidade patológica das existências trans. Trata-se de malabarismos teóricos para salvar a imagem do francês — e defender o seu legado — ou de uma nova perspectiva que resguarda a complexidade do pensamento lacaniano frente às transidentidades?

A tese organizadora do livro é a de que a experiência trans se refere a um problema de vida ou morte

Outros autores considerados canônicos, cujas práticas clínicas são datadas e ensinam como não escutar pessoas trans, também são mobilizados por Gherovici. Magnus Hirschfeld, David Cauldwell, Emil Gutheil, Harry Benjamin, John Money, Wilhelm Stekel e Robert Stoller são citados, e suas produções são reconstituídas para compor o importante mosaico de como as vivências trans foram relatadas na literatura científica do século 20. Essas produções remontam ainda a como os operadores de escuta se construíram em prol de considerar determinadas experiências humanas como erradas, desviantes.

Nesse sentido, uma das discussões mais provocativas que Patricia Gherovici suscita na obra é a restituição do valor do sexual na produção psicanalítica. A autora defende a interessante tese de que a interrogação sobre a sexualidade, as perturbações da identidade, a artificialidade, a plasticidade do gênero dizem respeito a todos os sujeitos falantes, sejam eles cis ou trans. No entanto, para estes últimos, cuja identidade foi forjada nos trabalhos do campo da sexologia recuperados pela psicanalista, é crucial que sua complexidade seja restituída. Isso significa inseri-los num debate mais amplo, em consonância com outros marcadores importantes como raça, classe e cultura, em tentativas ético-políticas de desvencilhar o “trans” do “sexual”.

Na esteira do que Sofia Favero trabalha em seu livro Psicologia suja (Devires, 2023), nós, pessoas trans, somos acusadas de “celebrar o corpo”, ao passo que as intervenções hormonais e cirúrgicas comumente utilizadas são questionadas em seu mérito e são vistas como aterrorizantes, manifestações de adoecimento psíquico. Sabemos que os psicanalistas são obcecados com as invenções criativas dessas pessoas, e Gherovici traz uma importante discussão sobre o tema. A beleza é objeto de reflexões sensíveis, levando em conta que muitas das intervenções que pessoas trans realizam ultrapassam uma questão meramente estética: dizem respeito a uma dimensão existencial.

Sobrevivência

A autora relata que construiu Transgênero em coautoria com os seus analisantes trans. É a eles que a psicanalista presume um saber orientador de seu tratamento. A tese organizadora do livro é a de que a experiência trans se refere a um problema de vida ou morte. É uma insurgência do campo existencial que convoca essas pessoas a transicionarem. É pensar a transição como uma estratégia de vida. A autora se vale da noção lacaniana de sinthoma para pensar psicanaliticamente o traço único de como alguém é e goza de seu inconsciente. E oferece novas coordenadas para a psicanálise lacaniana se comportar com pessoas trans.

Gherovici questiona a metáfora essencialista que apregoa a substancialidade de uma transexualidade, expressa em discursos como “nasci no corpo errado” ou “um cérebro masculino em um corpo feminino”. Essas frases escamoteiam, com uma lógica ontológica, a plasticidade e o questionamento da norma que essas identidades suscitam.

O Transgênero de Gherovici está articulado como uma possibilidade de psicanálise que possa ser usada em sua potência subversiva, na construção de um pensamento clínico-teórico que sirva na escuta das complexidades inerentes ao sofrimento psíquico de pessoas trans.

A obra faz um convite aos profissionais que vão trabalhar com esse público a abandonarem o lugar de expertise e assumirem o potencial desses sujeitos de produzir um saber sobre si, orientado pela ética do desejo. Em última análise, oferece uma contribuição importante para a psicanálise ao abrir espaço para um diálogo menos patologizante sobre as identidades trans. No entanto, sua aplicação e interpretação precisam ser cuidadosas para evitar a reprodução de preconceitos e simplificações. Sobretudo no Brasil, o novo livro de Gherovici precisa ser lido com um bastão ético territorializado.

Quem escreveu esse texto

Helena Vicente

É membro da Comissão Transcentrada do Conselho Regional de Psicologia do Paraná.

Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024. Com o título “Um mundo em transição”

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