Livros e Livres,

O arco-íris e a nação

Ensaios e antologia de contos organizada por César Braga-Pinto revelam como autores retrataram raça e gênero na virada entre os séculos 19 e 20

20ago2024
O professor de literatura César Braga-Pinto (Divulgação)

Professor de literatura na Universidade Northwestern, nos Estados Unidos, César Braga-Pinto acaba de publicar mais dois livros sobre sua pesquisa da literatura brasileira do fim do século 19 e do início do 20. Os ensaios de Poses e posturas: performances de gênero e sexualidade na literatura brasileira (1850-1950) já haviam sido publicados isoladamente em inglês ou português, em outras versões. O homem que passou por baixo do arco-íris e outras histórias sobre sexualidades, gênero e dissidência (1850-1950) recolhe desde contos canônicos de Machado de Assis e Mário de Andrade até textos inéditos em livro, alguns há décadas fora de circulação, incluindo um conto renegado de Lygia Fagundes Telles.

Os ensaios reúnem análises, a partir da crítica literária Sylvia Molloy e da “epistemologia da pose”, das representações literárias das dissidências de gênero e de sua relação com as representações da nação. A primeira seção reúne estudos sobre Joaquim Manuel de Macedo, Coelho Neto, Raul Pompeia, João do Rio e José Lins do Rego.

O capítulo sobre Raul Pompeia argumenta que sua morte converteu “a vergonha e a humilhação” de um autor reputado como homossexual “em uma demonstração exemplar e espetacular de honra e que inaugura, no Brasil, uma linhagem moderna de escritores suicidas”, que chegaria até Victor Heringer, morto em 2018. Roberto Gomes e Reynaldo Bairão, autores de menor vulto, servem no ensaio para tratar da questão da possibilidade de um “arquivo queer suicida” na literatura, o que surpreendentemente leva ao poema “Homenagem”, de Carlos Drummond de Andrade.

O ensaio sobre João do Rio apresenta uma inovadora análise da influência de Oscar Wilde sobre a literatura brasileira do início do século 20, em diálogo com as pesquisas de Molloy sobre a recepção do autor irlandês na América hispânica. No Brasil, argumenta Braga-Pinto, ao contrário daquela outra América, onde prevaleceram os “costumes heterossexuais”:

Os sujeitos sexualmente dissidentes, às vezes racializados, manipularam estrategicamente a exibição de seus próprios corpos (e obras) no que considero ser um forte contraste, tanto com as psicopatologias dos criminólogos e naturalistas do século XIX, quanto com as várias formas do nacionalismo viril.

Braga-Pinto contrasta a obra do homossexual e afrodescendente João do Rio com a recepção de Lombroso pela elite letrada brasileira, especialmente o criminólogo Francisco Viveiros de Castro, e valoriza, com fundamento em Gabriel Tarde e em Wilde, a ideia de imitação: em João do Rio, ela se torna “mecanismo de reconhecimento, sobrevivência, aceitação e ascensão social”.

A segunda e última seção compõe-se de ensaios sobre Mário de Andrade e segue a tese, apoiada em Horácio Costa, de que o modernismo paulista interrompeu a “supervisibilidade de formas de representação — e classificação — da dissidência que, para o bem ou para o mal, circulavam entre romances, poesias”, recuperando autores do decadentismo na genealogia daquele escritor.

Homofobia e racismo

Braga-Pinto trava um interessante embate com a fortuna crítica, “limitada pelo que se poderia denominar homofobia e racismo estruturais”, especialmente Antonio Candido e Roberto Schwarz. Também critica as acusações de “cabotinismo” dirigidas a Mário, lembrando que foram dirigidas tanto a ele quanto a João do Rio, “ambos mulatos […] cuja sexualidade estava sempre sob suspeita”. Trata também dos críticos que acabaram recuando diante do tema da homossexualidade na obra de Mário, como Leandro Pasini e Raul Antelo. Curiosamente, discorda de Eliane Robert Moraes, que chamou Mário de homossexual, porque “a tentativa de controle e definição da sexualidade de Mário ao expor-se seu futuro segredo pouco se distingue da atitude anterior ao sequestro” da sexualidade do autor.

No último ensaio, explica a razão: não lhe interessa tirar Mário do armário, pois se inspira na análise de Langston Hughes pelo historiador Wallace D. Best, que afirmou que chamar Hughes de gay faria perder de vista sua estratégia de identidade como espaço de liberdade e subjetividade performativa.

O homem que passou por baixo do arco-íris dá continuidade aos dois volumes de Dissidência de gênero e sexualidade na literatura brasileira (1842-1930), compilados por Braga-Pinto e Helder Thiago Maia, e publicados em 2021 no Brasil e em Portugal, com trechos de prosa, poesia e teatro.

O novo livro reúne somente contos. Os mais bem logrados são os de Machado de Assis, Mário de Andrade e João do Rio, além do misterioso Symphrônio Perillo, que pode ter sido um pseudônimo deste último (em Poses e posturas, Braga-Pinto analisa o conto de Perillo no ensaio sobre João do Rio). É significativo que esses autores não estejam entre os numerosos que sucumbem à facilidade ou clichê de tornar suas histórias catecismos contra as divergências de gênero; João do Rio chega a criticar a “normalização e toda a patologização” em “A moléstia do ciúme”, um dos inéditos em livro.

Há alguns pontos polêmicos nas apresentações de cada autor. Pode-se afirmar, discordando do crítico, que a escolha de Machado de Assis do título “Pílades e Orestes” (nome de um famoso casal masculino da Antiguidade grega) alude à homossexualidade. Surpreende que Braga-Pinto, que critica a atitude de tirar Mário do armário, sugira que essa investigação seja feita sobre Alfredo Mesquita.

O livro, que não foi bem editado (a mancha, particularmente, é ruim para a leitura), não teve revisão senão a do autor. Por isso, alguns erros podem ser notados, entre eles a não manutenção da grafia “kristalização” no conto de Pardal Mallet e equívocos nas datas de nascimento e morte, como de César de Castro e Gasparino Damata. Coisas de pouca monta para uma obra dessa extensão e dessa importância.

Quem escreveu esse texto

Pádua Fernandes

Autor, entre outros, de Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura (Patuá).