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Dentro e fora da norma

Coletânea de ensaios mostra papel central do Judiciário
no avanço de direitos LGBTQIA+ e aponta limitações e desafios

17jun2024 • Atualizado em: 02ago2024
Parada do Orgulho lgbti+ diante do Congresso Nacional em 2022 (Fabio Rodrigues-Pozzebom/Reprodução)

Em setembro de 2014, quando Irandhir e eu seguimos ao 8º Ofício de Notas do Recife com o objetivo de formalizar a nossa união estável, tínhamos uma urgência prática: a necessidade de inclusão do meu companheiro como dependente no plano de saúde que eu estava prestes a contratar. Em maio de 2011, os ministros do Supremo Tribunal Federal haviam decidido pelo reconhecimento da constitucionalidade de uniões como a nossa, entre pessoas do mesmo gênero.

Três anos depois, portanto, os funcionários do cartório achavam-se já familiarizados com o nosso tipo de pedido, capazes de enquadrá-lo em uma categoria jurídica específica, expressa no topo da primeira página do documento com o qual deixamos a sala do tabelião, a “escritura pública declaratória de união estável homoafetiva”. “Homoafetiva” seria então a nossa relação, o que nos possibilitaria o compartilhamento do plano de saúde e a compreensão de que nós somos uma família. Mais amplamente, no entanto, a categoria representava um marco no processo de cidadanização de pessoas LGBTQIA+ no Brasil, como definiu o antropólogo Sérgio Carrara, processo este que, na última década, passaria decisivamente pelo Poder Judiciário.

Organizada pelos professores Renan Quinalha, Emerson Ramos e Alexandre Melo Franco Bahia, a coletânea Direitos LGBTI+ no Brasil: novos rumos da proteção jurídica pode ser vista, de pronto, como um emblema da centralidade do judiciário para tal cidadanização. Divisado historicamente, o título aponta para os modos como certos sujeitos foram emergindo no espaço público brasileiro por meio da linguagem jurídica, em meio a reivindicações políticas e acórdãos de tribunais, de forma que juristas pudessem tornar-se especialistas a seu respeito. Os seus vinte capítulos, escritos sobretudo por pesquisadores do direito, demonstram que esses especialistas também têm sido capazes de produzir críticas profícuas ao processo e ao que, em seu texto, Alice Hertzog Resadori denominou de “inclusão conservadora”, ao analisar as decisões do STF sobre direitos de pessoas trans e travestis.

O principal mérito do título reside na corajosa escolha editorial das questões a serem enfrentadas

O volume apresenta ainda um conjunto relevante de contribuições para o entendimento do fenômeno, que derivam de diálogos teóricos interdisciplinares e pouco comuns nas faculdades de direito. Entre os quais, estão os que Antonella Galindo depreende com o campo do direito antidiscriminatório; os que Gabriel Mantelli, Isabela Bicalho e João Vicente Pereira estabelecem com a abordagem decolonial; e aqueles desenvolvido por Bruno Roberto de Souza Siqueira e Alexandre Melo Franco Bahia junto à crítica antirracista, usando como referência a obra do filósofo e cientista político Achille Mbembe. Influenciados pelos feminismos, pelos estudos de gênero e pela perspectiva queer, os diálogos teóricos que compõem os capítulos aliam-se a investimentos metodológicos também raros nas faculdades de direito brasileiras.

Chama atenção a opção pela pesquisa empírica que leva a sério os procedimentos de análise de decisões judiciais — tomadas como corpus de pesquisa, e não como mero anteparo para os argumentos de quem escreve. É o que acontece no texto de Victor Sugamosto Romfeld, que examina acórdãos do Tribunal de Justiça do Paraná para entender se, em suas decisões, os desembargadores reconhecem condutas discriminatórias praticadas contra pessoas LGBTQIA+. É notável, além disso, a presença de pesquisas etnográficas. O texto de Laura Mostaro Pimentel e Luiza Cotta Pimenta, sobre o reconhecimento de uniões homoafetivas não monogâmicas, resulta de uma etnografia de documentos. Por sua vez, o capítulo de Carlos Eduardo Barzotto e Fernando Seffner advém de uma pesquisa etnográfica com estudantes de escolas públicas. Destaca-se ainda o esforço metodológico de Eder van Pelt na “reescrita queer” da decisão dos ministros do STF sobre as uniões homoafetivas. Aqui, aquela mesma decisão judicial que permitiu a inclusão de Irandhir em nosso plano de saúde é analisada a contrapelo, expondo-se as moralidades que a atravessam e limitam sujeitos de direitos.

Posicionamento político

Talvez o principal mérito de Direitos LGBTI+ no Brasil resida em seu posicionamento político, na corajosa escolha editorial das questões a serem enfrentadas. Isso porque tais questões se encontram implicadas no contexto da crise democrática que ainda vivenciamos e que se alimentou da intensa mobilização, por agentes conservadores, de pânicos morais e controvérsias públicas sobre gênero e sexualidade durante o processo de cidadanização. Daí a importância dos capítulos dedicados à educação, do texto etnográfico de Barzotto e Seffner, mas igualmente do artigo de Arthur Albuquerque de Andrade sobre o direito à educação sexual anti-LGBTfóbica, que atinge o cerne do pânico moral do “kit gay”. A seu tempo, a escolha editorial de destinar seis capítulos a discussões relacionadas a direitos de pessoas trans, travestis e intersexo não só joga luz sobre sujeitos e direitos que carecem de maior visibilidade como assume a relevância política dos corpos trans para a definição das fronteiras da experiência democrática, encarando outro terrível pânico moral, o da “ideologia de gênero”.

Outras duas dimensões tornam o título referência para estudantes e profissionais do direito, assim como para um público mais amplo: o caráter pedagógico de alguns artigos, associado à qualidade das análises de conjuntura. O texto de Emerson Ramos e Paulo Iotti sobre a caracterização da homotransfobia como crime de racismo serve de literatura obrigatória para aulas de direito penal. Já o artigo de Lucas Bulgarelli e Arthur Fontgaland e o de Bruna Andrade Irineu oferecem leituras perspicazes dos efeitos das agendas anti-LGBTI+ e neoliberal no país e dos desafios postos aos movimentos sociais.

O texto de Renan Quinalha, na abertura do volume, também contribui para a leitura dos nossos horizontes políticos, prospectando-os contudo para o direito ao prazer, ou seja, para aquilo que as primeiras mobilizações homossexuais brasileiras reivindicavam, nos idos dos anos 70, num tom e numa estética mais próximos ao desbunde. Seguindo os argumentos de Quinalha, acredito que a coletânea pode operar em sentidos recíprocos, mesmo que em alguma medida conflituosos. Emblema do processo de cidadanização de pessoas LGBTQIA+
o título opera na expansão e consolidação desse processo, ensinando sobre aquilo que nos levou, a mim e Irandhir, àquele cartório, porque o manejo dessa noção de família permanece imprescindível à proteção de sujeitos e direitos. Por outro lado, é um livro que instiga a crítica ao que juridicamente parece fundamental, afinal nossas experiências nunca se submetem no todo à norma, há sempre o que escapa, como há o prazer e a premência política de não permitir a sua domesticação.

Quem escreveu esse texto

Roberto Efrem Filho