Livros e Livres,

A psicanálise no divã

Com espírito crítico, autora revisita primeira geração de analistas e desarquiva dissidências à luz de inquietações do presente

28nov2024 | Edição #88 dez
Baile travesti no Instituto para a Ciência Sexual, em Berlim. Data desconhecida (Archives of the Magnus-Hirschfeld-Gesellschaft/Divulgação)

O percurso de um tratamento psicanalítico é, em certa medida, um trabalho historiográfico: retomamos arquivos da infância, escovamos a contrapelo a hegemonia narrativa do ego triunfante e, nesse exercício de reescrita do passado, abrem-se janelas para um futuro quiçá liberto das neuroses do destino. Ao mesmo tempo, o divã é o lugar onde a normatividade sexual se abala ao narrar-se: nosso tesão, identidade de gênero, violências que sofremos ou infligimos enfrentam a prova dos nove da arqueologia subjetiva. E dela, nem mesmo o homem branco cis e hétero sai (ou deveria sair) ileso.

São raros os trabalhos teóricos que aplicam esse mesmo espírito criticamente clínico à própria psicanálise. Histórias da margem: lésbicas, gays e os primeiros analistas, de Flávia Ripoli Martins é uma análise no pleno sentido do termo. Ao revisitar os anais da psicanálise à luz de inquietações do presente, a autora complexifica a binaridade que comumente reduz Freud seja a um autor queer avant la lettre, seja a um simples teórico do falogocentrismo. O livro é oriundo de uma dissertação de mestrado em psicologia clínica e, não pecando em rigor formal e metodológico, tem como um de seus méritos uma escrita fluida que o torna acessível a um público maior.

No divã, a normatividade sexual se abala ao narrar-se: nosso tesão, identidade de gênero, nossas violências

Ecoando Gayle Rubin, a autora demonstra a existência de uma espécie de inconsciente psicanalítico que entretece teoria, práticas institucionais e posicionamentos morais das primeiras gerações de analistas. Ela recusa a tônica contemporânea do lacanismo, as aproximações convenientes e pacificadoras entre psicanálise e teorias queer e a psicologização de gêneros dissidentes, buscando entender o que há por trás do eterno retorno a Freud na discussão sobre as homossexualidades. Se é bem verdade que o pai da psicanálise não subscreve a homofobia hegemônica de sua época, há todo um contexto histórico, social e acadêmico que frequentemente é ignorado.

Depois de um resumo de como práticas eróticas diversas na Antiguidade e Idade Média se consolidaram como um híbrido entre crime e doença na Modernidade, o segundo capítulo faz um mergulho nas primeiras teorias científicas sobre a homossexualidade e a lesbianidade. Manter a tensão irresoluta entre as duas categorias é um ponto alto da escolha metodológica da autora: não é possível falar da homossexualidade como categoria única, pois o lugar social destinado a mulheres e homens impacta na compreensão de suas formas de amar.

Primórdios

Entre teorias mais abertamente patologizantes, como Krafft-Ebing, e as que mesclavam ativismo e pesquisa, como Magnus Hirschfeld, o livro se diferencia ao incluir nessa lista Anna Rühling, uma das primeiras ativistas lésbicas da era moderna. Pioneira numa discussão sobre a espessura psíquica da lesbianidade, suas proposições são mais radicais do que as freudianas subsequentes e avançam em relação a elas ao defender, por exemplo, que a especificidade de mulheres lésbicas fosse incluída no feminismo.

O livro então se volta à psicanálise em si: o primeiro ímpeto da teoria freudiana aponta para a suspensão da fronteira entre normal e patológico no campo da sexualidade. A pulsão é, por natureza, perversa e a normalidade deve ser localizada não na constituição física ou psíquica, mas em discursos sociais, como demonstra a autora ao retomar a crítica de Freud aos efeitos da moral sexual repressiva no sofrimento de quem não pactua com a heteronormatividade. 

Paradoxalmente, o teórico irá também refletir sobre a gênese da homossexualidade e da lesbianidade, lançando mão de hipóteses distintas ao longo de sua obra. Ainda que afirme que a atração heterossexual requer igualmente esclarecimentos — não sendo, portanto, “natural” —, discute o homoerotismo a partir de uma escolha de objeto narcísica ou de uma transformação de um ódio inicial em relação ao semelhante em amor romântico e sexual. As teorias freudianas sobre a constituição da identidade de gênero e da orientação sexual são a tal ponto numerosas que Judith Butler chega a propor que a heterossexualidade seria uma formação melancólica do ego.

A originalidade de Histórias da margem vem da aposta de que tais reflexões não podem ser analisadas apenas pelo arcabouço teórico. Freud contou com um seleto grupo de analistas de primeira geração com os quais, durante anos, debateu ideias que só mais tarde encontrariam sua forma final em textos. A ideia, ainda presente em alguns círculos psicanalíticos, segundo a qual política e psicanálise não devem se misturar (seja pela “neutralidade”, seja pela ênfase na “singularidade”) não resiste ao escrutínio da autora: as atas da Sociedade Psicanalítica de Viena mostram o quanto se debatiam desde o início questões sociais, que passam pela crítica à criminalização da homossexualidade, a tensão entre reforma e revolução das políticas sexuais do Estado e as relações de poder no casamento.

O ingresso de mulheres nas reuniões psicanalíticas não foi sem consequências para os debates pioneiros

Descobrimos que a militância gay de Berlim contou com um caloroso debate no interior da nascente sociedade psicanalítica. Capitaneada por Hirschfeld e apoiada por Freud, a elaboração de uma pesquisa empírica sobre as dissidências sexuais foi discutida na então Sociedade Psicológica das Quartas-feiras, gérmen da Associação Psicanalítica Internacional. Ainda que tal convergência entre a psicanálise e a sexologia crítica alemã não tenha sobrevivido à revolta de alguns analistas conservadores, a autora faz notar o impacto dos embates na doutrina de Freud no início do século 20.

O ingresso de mulheres nas reuniões psicanalíticas — onde tinham direito de voz e voto numa sociedade que ainda não permitia o sufrágio feminino — não foi sem consequências para os debates pioneiros. Pouco debatida nos encontros, as reflexões sobre a lesbianidade orbitaram ao redor de teses que ecoaram no pensamento analítico: a ligação da menina à mãe, a repulsa do pênis e a fixação clitoridiana. 

A autora localiza na própria história da psicanálise algo que a luta social vem denunciando há décadas: a invisibilização da lesbianidade. Neste sentido, o silenciamento da relação entre Anna Freud e a também psicanalista Dorothy Burlingham não poderia ser mais representativo de um movimento que, contraditoriamente, reconhece a normalidade das formas plurais de amar, mas hierarquiza a visibilidade dos capítulos de sua história.

Compreender o jogo de luz e sombra que, nos primórdios da aventura freudiana, constituiu a política de estabelecimento de centro e periferia da sexualidade justifica a feliz escolha do título. Histórias da margem é essencial a quem acredita que a igualdade depende de justiça histórica.

Quem escreveu esse texto

Pedro Ambra

É professor da PUC-SP e doutor em psicanálise e psicopatologia pela Universidade de Paris e em psicologia social pela USP.

Matéria publicada na edição impressa #88 dez em dezembro de 2024. Com o título “A psicanálise no divã”

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