Literatura,

Uma vida sem mistério

Biografia autorizada retrata a mais famosa autora de livros policiais de todos os tempos

28nov2018 | Edição #18 nov.2018

Uma das maiores decepções da biografia autorizada de Agatha Christie (1890-1976) é que a vida da maior escritora de histórias de detetives do mundo passou incólume de grandes mistérios, apesar de antigos rumores. 

O retrato que surge é de uma mulher inteligente e divertida, muitas vezes mais preocupada com os afazeres do lar e a decoração de suas diversas casas, e que facilmente se enquadraria no elenco da série Downton Abbey.

A criadora dos detetives Hercule Poirot e Miss Marple escreveu oitenta livros do gênero e foi aclamada pela Unesco, ainda em 1961, como a escritora mais vendida do mundo. O recorde permanece até hoje no Guinness, na categoria ficção. Dramaturga consagrada, também escreveu a peça A ratoeira, a mais longeva em cartaz: de 1952 até hoje ininterruptamente. 

Antes de tudo isso, a jovem Christie queria ser pianista ou cantora de ópera. Adorava jogar golfe e surfar, esporte que aprendeu na África do Sul durante uma viagem de um ano pelas colônias britânicas. Era também fotógrafa das expedições arqueológicas de seu segundo marido, e as passagens do casal pelo Iraque e pela Síria lhe renderam materiais para muitos livros, entre eles Assassinato no Expresso do Oriente (1934).

Mas, por décadas, houve sim um grande mistério na vida de Christie. Em 1926, após perder a mãe e ver seu primeiro casamento naufragar, ela desapareceu por dez dias, causando um enorme rebuliço na mídia local e tremenda aflição entre seus familiares e amigos. A escritora foi encontrada num hotel sofrendo de amnésia. 

O livro investiga o caso minuciosamente e acaba com vários mitos estapafúrdios — até um que virou livro e depois foi adaptado ao cinema: afirmava que a inglesa simulara a própria morte para culpar a mulher pela qual seu marido se apaixonara. A narrativa da biografia, no entanto, é mais relatorial do que literária — de certo modo em acordo com as tramas detetivescas de Christie, embora careça de um final marcante.

Originalmente publicada em 1984, é evidente a datação da biografia. Com quase quinhentas páginas, nota-se que não há um cuidado maior com o contexto histórico de certos momentos da vida de Christie, que viveu por longos e prolíficos 85 anos e passou pelas duas grandes guerras mundiais. 

A geografia também não foi atualizada na edição brasileira. As passagens sobre Nimrud, sítio arqueológico iraquiano, são das mais interessantes do livro, mas é preciso recorrer à internet para saber que ele foi destruído pelo Estado Islâmico em 2015.  

A biógrafa Janet Morgan teve acesso liberado pela família a todos os cadernos, álbuns de fotografias e centenas de cartas da autora, material em que a obra é fortemente baseada. Muitos dos rascunhos e anotações aleatórias são jogados ao leitor de forma um tanto cansativa, mas com a proposta de mostrar como suas tramas eram arquitetadas.

Obsessão com as capas

As cartas entre Christie e seus editores ingleses e americanos revelam seu lado mais arredio e uma certa obsessão para controlar o design das capas. Já o vaivém epistolar com seu segundo marido, afastado por um ano durante a Segunda Guerra, traz seu lado mais doméstico e amoroso, longe das histórias policiais rocambolescas.

Sem dúvida, a biografia consegue dar um gostinho do que se passava na cabeça da Dama do Mistério, incluindo seu profundo desdém por Hercule Poirot, o policial belga aposentado e sua principal fonte de renda. A primeira aparição dele foi em 
O misterioso caso de Styles (1920), recusado por três editoras. “Poirot é um tanto insuportável”, escreveu para um editor nos anos 1930.

Embora biógrafa oficial, Morgan não evita temas delicados, como as acusações de alusões antissemitas em dois livros e as críticas do americano Edmund Wilson (1895-1972), que desdenhou das obras de Christie e chamou seu estilo de ridículo e banal.  

Brasil faz uma pequena ponta na história, revelando o lado conservador da autora e sua distância das feministas da época. Quando um jornalista brasileiro pediu para usá-la de exemplo para estimular as mulheres “a fazer algo mais do que passar o dia com trivialidades”, ela respondeu melancólica: “As mulheres brasileiras são felizes e sortudas”.

Quem escreveu esse texto

Fernanda Ezabella

É jornalista.

Matéria publicada na edição impressa #18 nov.2018 em novembro de 2018.