Literatura,
Um predador de terno e gravata
De autoria de John Polidori, o primeiro trabalho moderno sobre vampiros sedimentou na literatura o arquétipo do sugador de sangue
01mar2021 | Edição #43Não existe noite mais auspiciosa para a literatura do que a de 16 de junho de 1816. Em uma noite chuvosa na Suíça, estavam reunidos Mary Shelley, ainda usando seu nome de solteira; Percy Shelley, que viria a ser seu marido; o célebre e polêmico poeta Lorde Byron, locatário da residência da Villa Diodatti, onde se hospedavam; e John Polidori, médico pessoal de Byron. Presos em casa devido ao mau tempo, não lhes restava muito que fazer. E é justamente em momentos como esse que a imaginação corre solta. Byron desafiou cada um dos convivas a escrever uma história de fantasmas. Enquanto Mary dava início a uma das mais célebres obras de terror e, posteriormente, de ficção científica, Frankenstein, Byron deixou sua história inacabada. Entretanto, alguns meses depois, Polidori usou a premissa desse conto para criar uma narrativa nova que se tornaria pioneira.
O conto foi inicialmente atribuído a Byron por um editor oportunista do New Monthly Magazine — o que acabou impulsionando a história ao surfar no nome mais famoso —, mas ambos logo desmentiram o equívoco para que a autoria fosse corretamente atribuída a Polidori. Conhecida como o primeiro trabalho moderno de vampiros, publicada em 1819, a obra sedimentou o arquétipo de sugador de sangue que todos conhecemos.
Em comemoração aos duzentos anos da publicação do conto, “O vampiro” ganha uma edição definitiva pela Sebo Clepsidra e pela Aetia. Há uma introdução que comenta o cenário em que a história foi produzida, assim como o seu legado para o meio cultural, além de correspondências de Polidori, resenhas na imprensa britânica, trechos de diários e o “Fragmento” de Byron (aquele aproveitado por Polidori), entre outros textos.
Elegância
Fétidos, bestiais, mais próximos de feras pútridas e desgrenhadas, inicialmente os vampiros estavam restritos ao cenário rural eslavo, germânico e balcânico. Atacavam pessoas e gado durante a noite, beirando um estado de suspensão da vida, presos a uma morte incompleta. O folclore relata que essas criaturas se instalavam dentro de cadáveres daqueles que haviam se suicidado, que não tinham recebido os ritos cristãos ou que foram sepultados em túmulos não consagrados. Um cadáver com tais características retornaria na condição de um morto-vivo para se alimentar da força vital ou do sangue dos vivos. Curiosamente, a forma como as pessoas dessas regiões lidavam com o assunto acabou se consagrando na literatura de vampiros, como a decapitação, a estaca no coração e a incineração dos restos mortais.
Polidori quebra essa tradição ao introduzir um vampiro elegante, um aristocrata que circula insuspeito pelos salões da sociedade civilizada, um predador de terno e gravata. Suas vítimas não estavam nas vilas rurais; estavam no centro da civilização ocidental. Seu corpo não era mais um cadáver reanimado. Tratava-se de um homem que poderia até não ser fisicamente belo, mas era hipnotizante, sedutor, que se regalava com a sordidez e fazia pouco caso das convenções morais ao abater jovens e ingênuas moças. Na melhor definição moderna do termo, o vampiro de Polidori era um porra-louca.
O protagonista é Aubrey, um jovem ingênuo que embarca em uma viagem. Em um evento em Londres, conhece Lorde Ruthven, um cavalheiro misterioso e rico, que passa a acompanhá-lo. Ruthven, além de ser um sedutor incansável, adora assistir à ruína das pessoas. Ultrajado por tal comportamento, Aubrey decide deixá-lo. Sozinho na Grécia, Aubrey cai de amores pela jovem Ianthe, apesar de ser uma moça “bruta e iletrada”. Ela o avisa sobre a lenda local a respeito de um vampiro, mas Aubrey descarta o alerta e Ianthe morre com a garganta estraçalhada. Sem reconhecer a influência de Ruthven na área, Aubrey volta a encontrá-lo e os dois continuam a viagem. Mas a dupla é atacada na estrada, onde Ruthven é mortalmente ferido. O pedido que ele faz a Aubrey é estranho, mas o jovem não contesta: por um ano, ele não pode dizer a ninguém que Ruthven morreu.
Mais Lidas
De volta a Londres, Aubrey se espanta com o ressurgimento do companheiro de viagem, vivo e bem, sob uma nova identidade e cortejando sua inocente irmã. Incapaz de protegê-la e atado à promessa feita, Aubrey sofre um colapso. Ao se recuperar, fica sabendo que ela está prestes a se casar com Ruthven no dia em que seu juramento termina. Ele escreve, então, uma carta à irmã em que explica tudo o que vivenciou e o risco que ela corre, mas sua irmã acaba morrendo pelas mãos do noivo, que foge na noite.
É óbvia a relação de Ruthven com Byron. O nome do personagem surgiu como uma paródia de Byron no romance Glenarvon, escrito por uma ex-amante do poeta, Lady Caroline Lamb. Ruthven e Byron têm em comum a boa aparência, a alta posição social, a riqueza, a insensibilidade e um voraz apetite sexual. Já Aubrey é a personificação angustiada de Polidori — inocente, jovem, fascinado por Ruthven, mas, ao mesmo tempo, apavorado pela atração que sente por ele.
A tensão desse relacionamento permeia cada parágrafo, e ela foi perpetuada em enredos de vampiros posteriores pela forma como a criatura exerce controle quase sexual sobre suas vítimas. Sensualidade e sexualidade são figuras que emergem no vampiro de Polidori e seguem a figura vampírica em Drácula, Entrevista com o vampiro e na saga Crepúsculo. Essa relação de amor e ódio tornou-se um elemento básico da própria ficção de vampiros. Relação que acabou ganhando contornos de paranoia sobre as relações sociais, pois não podemos deixar de perguntar: quem são os reais bebedores de sangue?
Matéria publicada na edição impressa #43 em fevereiro de 2021.