Literatura,
Tempero demais
Com trama pouco convincente sobre jornalista em colapso, escritor policial decepciona em sua obra mais recente
28nov2018 | Edição #19 dez.18/fev.19Coqueluche da Hollywood da década passada, Dennis Lehane despontou na literatura policial em 1994, com Um drink antes da guerra, o primeiro dos seis livros protagonizados pelos detetives Patrick Kenzie e Angela Gennaro. Revelava, numa trama envolvendo corrupção e exploração de menores, talento singular no manejo da violência — chocando sem apelar —, e a obsessão por certos elementos que se repetiriam em quase toda a sua obra: heróis mais impetuosos do que cerebrais, pedofilia, Boston.
Marcados pela engenhosidade das reviravoltas, os livros de Lehane se revelaram talhados para o cinema. Não à toa, dois deles — os únicos fora da série Kenzie-Gennaro à época — receberam boas adaptações para as telas: Sobre meninos e lobos, publicado em 2001 e dirigido por Clint Eastwood dois anos depois, e Paciente 67, de 2003, base para A ilha do medo, de Martin Scorsese, lançado em 2010.
A série principal de Lehane se esgotou naturalmente, e o autor partiu para novos formatos. Em Coronado (2006), reuniu cinco contos e uma peça. Enveredou pelo caminho do romance histórico, com Naquele dia (2008), um catatau sobre a greve geral de Boston de 1919, e, ainda na chave do registro de época, concebeu Os filhos da noite (2012), um thriller ambientado nos anos da lei seca.
Mais recentemente, voltou à atualidade com A entrada (2015) e Depois da queda, lançado no Brasil neste ano. Esta é, certamente, sua obra mais decepcionante, pondo a nu certos vícios que já podiam ser notados nos últimos títulos de Kenzie-Gennaro.
Colapsos
Envolvido numa névoa depressiva, o livro se divide em três partes, cada uma delas focada num dos três colapsos da jornalista Rachel. O primeiro (e melhor) começa com a morte da mãe da protagonista, uma psicóloga renomada e sociopata que tiranizava a filha chantageando-a com a identidade não revelada do pai — as sequências em que Rachel busca por ele são o ponto alto do romance.
A segunda parte se concentra na depressão que a protagonista enfrenta após cobrir o terremoto do Haiti em 2010. As extensas descrições da evolução de seu estado de ânimo, ao ver ruir seu casamento e desmoronar a promissora carreira na televisão, culminam no encontro com Brian, um misterioso trader de madeira cujas virtudes são boas demais para serem verdadeiras. Casam-se, e ele passa a ser a única pessoa com quem ela se relaciona.
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Explicações pouco convincentes sobre a vida do marido fora de casa intrigam a jornalista. Descoberto o segredo que turva a relação do casal, ocorre o terceiro colapso, consumado já no prólogo: a bordo de um barco, ela atira no companheiro.
Constituída por sequências de ação, a parte final descreve a tentativa de Rachel de alcançar o que Lehane chama de “essência primal”. O acesso ao instinto animal seria sua salvação.
Esquematismos
Se era devido à prosa dinâmica e à atmosfera soturna bem construída que os enredos de Lehane conversavam em alto nível com os melhores roteiros do cinema americano, aqui se nota uma regressão. O livro recorre, sobretudo nos diálogos opacos de intimidade conjugal, a fórmulas gastas de filmes e séries de tv — já no prólogo, Brian, estrebuchando, balbucia: “Eu. Te. Amo”.
O mundo de Lehane é um caos dominado pelo mal, personificado em poderosos e em predadores sexuais
De qualquer modo, as questões de estilo são secundárias. O que aborrece mesmo é a concepção esquemática e mal-ajambrada do modo como o autor parece ver o mundo, regido por um caos dominado pelo mal, que por sua vez é personificado em predadores sexuais e poderosos de toda sorte. Uma barafunda perversa, em que os bons só não são esmagados se recorrerem a uma violência redentora — que, no fim das contas, só serve para modificar pontualmente a realidade do microcosmo em que existem.
Indo além da representação social e humana que constituía o cerne de seus romances, neste livro Lehane se investe da condição de criador universal, materializado no narrador em terceira pessoa que chega até a arriscar análises sociológicas impositivas, como aqui: “Se em algum momento existiu algum pacto social entre esse país e seus cidadãos, estava extinto havia muito tempo, salvo pelo estado natural hobbesiano já em vigor desde que nossos ancestrais deixaram as cavernas à procura de comida: primeiro o meu. Cada um por si”. Talvez por isso seu talento como cronista de Boston, antes tão cristalino, só apareça de forma fugaz, como na descrição de um dia de jogo de beisebol numa cidade tomada por um processo inexorável de gentrificação.
Em Depois da queda o autor também parece aproveitar mal outro tema recorrente em sua obra, ao qual, em entrevista de 2011 ao jornal britânico The Independent, ele se refere como “irreconcilable dilemma”: uma escolha que os personagens se veem constrangidos a fazer diante de duas alternativas terríveis, e que, uma vez tomada, amargura-os de forma irremediável. O subterfúgio foi muito bem usado em outras ocasiões, especialmente em Gone, Baby, Gone (1998), quando Patrick Kenzie decide denunciar o policial que sequestra a filha da cliente do detetive — uma mulher adicta e relapsa — com o intuito de lhe proporcionar uma vida decente.
Desperdícios
O dilema irreconciliável, aqui, tem a ver com a estadia de Rachel no Haiti, mas seu potencial naufraga em meio a uma trama excessivamente dominada por reviravoltas. São tantas, e tão pouco convincentes, marcadas por personagens que entram e saem da história de forma errática, que anulam qualquer possibilidade de surpresa. Desperdiçado num caldo inverossímil, um ingrediente que poderia ser interessante fica esfumaçado ao término do livro, a ponto de não ficar clara a relação entre a superação do trauma e o desfecho da história.
Um enredo pouco crível, por si só, não seria problema, sobretudo quando se trata de um autor tão hábil na manufatura de romances policiais. Se a trama for redonda e os personagens, palpáveis, há grandes chances de a leitura ser prazerosa. Porém, tanto as soluções que o autor encontra para os conflitos como a construção de seus protagonistas — o tratamento dispensado a Brian, nitidamente um abusador psicológico, é no mínimo duvidoso — sugerem que o último livro de Lehane falha também nesses aspectos.
Matéria publicada na edição impressa #19 dez.18/fev.19 em novembro de 2018.
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