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Simplesmente escritoras

Em série de ensaios, autora argentina questiona a imposição de ser genial às ficcionistas e faz uma defesa da imaginação

20maio2024 - 19h36 • 28maio2024 - 16h56
A escritora argentina Betina González (Alejandro Meter/Divulgação)

No último ano, proliferaram lançamentos que tratam do processo de escrita. Entre eles, estão Escrita em movimento: sete princípios do fazer literário (Companhia das Letras), de Noemi Jaffe, O lugar das palavras: primeiros embates do narrador contemporâneo (Moinhos), de Vanessa Ferrari, e os mais recentes Manual de sobrevivência na escrita (Bandeirola), de Ana Rüsche e George Amaral, O homem não existe: masculinidade, desejo e ficção (Zahar), de Ligia Gonçalves Diniz, e Sobre literatura e história: como a ficção constrói a experiência (Companhia das Letras), de Júlio Pimentel Pinto. A obrigação de ser genial (Bazar do Tempo), da escritora argentina Betina González, com tradução de Silvia Massimini Felix, é o mais novo título dessa safra a ser publicado no Brasil. Com o adicional de se dirigir diretamente a escritoras do gênero feminino.

González faz parte da nova geração de autoras argentinas cujos textos aliam estranheza, crítica social e algo de insólito. Seu livro de estreia, Arte menor, ganhador do prêmio Clarín em 2006, segue uma filha tentando recuperar a trajetória do pai morto ao comprar esculturas feitas por ele que estavam com suas antigas amantes. Las poseídas, vencedor do prêmio Tusquets em 2012, trata da amizade de duas meninas em uma escola religiosa, enquanto América alucinada, de 2017, ambientado em uma cidade fictícia, mostra jovens abandonando seus filhos para voltar a viver na floresta à medida que os cervos do entorno passam a se comportar de maneira estranha e agressiva. Ela também publicou o livro de contos El amor es una catástrofe natural (2018) e o romance Olimpia (2021).

A obrigação de ser genial, seu primeiro livro traduzido no Brasil, é uma reunião de dez ensaios que se originaram da sua experiência como professora de literatura e de escrita ao longo de cinco anos. Dividido em duas partes, González se embrenha, em “A aventura textual”, no bosque da ficção, tratando de como colocar a emoção na página sem cair no sentimentalismo, e analisa alguns começos de romances, a tensão entre a imaginação e os fatos reais, o ritmo do texto e como se termina um romance. A segunda seção, “Silêncio, exílio e astúcia”, traz reflexões sobre o que é ser uma romancista para além da escrita, como a participação em festivais literários, a diferença de escrever em outras línguas, a importância do silêncio e a imposição da ideia de que, para serem reconhecidas como escritoras, as mulheres têm que estar a um passo da genialidade

González pertence à geração de argentinas cujos textos aliam estranheza, crítica social e algo de insólito

“A obrigação de ser genial”, não à toa, é o ensaio que dá título ao livro e é um dos mais marcantes, pois trata do reconhecimento das mulheres dentro do panteão das letras. González, como a maioria das escritoras, demorou a se reconhecer como tal e comenta que elas, em geral, são separadas em duas categorias: a do duplo padrão e a da anomalia. A primeira diz respeito às mulheres serem relegadas a esferas particulares, como a “literatura feminina”, uma vez que seus escritos não teriam nada a contribuir com a condição humana — é o fenômeno da “guetização”, que recai não só sobre a escrita feita por mulheres, mas por qualquer grupo que esteja fora do padrão do homem-cis-hétero-branco, tido como o universal. A segunda vê a obra de determinada autora como uma exceção à regra, no sentido de não parecer uma literatura feita por uma mulher, podendo ser considerada “excêntrica, anômala, ‘não feminina’ e, portanto, interessante”.

Ou seja, para ser reconhecida, a escritora precisa ser genial. Ela não pode ser medíocre ou mediana, precisa ser melhor que todos para se destacar. O que não acontece, a priori, entre seus colegas homens, que têm a liberdade de ser geniais, medianos ou medíocres. Ser genial é mais uma pressão imposta às mulheres. Como exemplo, vale citar um trecho do diário da poeta argentina Alejandra Pizarnik: “Falei das minhas tentativas literárias. Eu sempre vou fazê-las, mas elas nunca vão chegar lá. Nunca vou escrever nada de bom, porque não sou genial. Não quero ser talentosa, ou inteligente, ou estudiosa. Quero ser um gênio! Mas não sou! E aí? Nada. Alejandra, nada!”. Se Pizarnik se sentia assim, o que resta a nós, reles mulheres mortais?

Direito à ficção

Outro ponto que perpassa os textos é a defesa da imaginação. González questiona o sucesso comercial de biografias, autoficções, narrativas baseadas em fatos reais e outros gêneros textuais mais calcados na experiência de vida dos autores, sem contar uma história. A não ficção, ela argumenta, usa as mesmas técnicas narrativas da ficção e os escritores precisam contar boas histórias.

González faz, na verdade, uma defesa da imaginação, pelo direito de viver outras vidas, pelo direito à ficção, portanto. A autora comenta que escreve por causa do desejo “de ser outra pessoa, um desejo com o qual eu podia facilmente me identificar”, que advém da “força e da necessidade da imaginação, de nosso direito de viver e narrar a vida do espírito, não apenas a de nossos eventos, propósitos, atos ou acontecimentos. Toda ficção literária é, de fato, uma afirmação desse direito”.

O texto conversa diretamente com o belo ensaio de Zadie Smith, “Fascinated to Presume: In Defense of Fiction” [Fascinada em presumir: Em defesa da ficção], publicado em 2019 no The New York Review of Books, em que reflete sobre a ideia de representação de “outros” que são diferentes de “nós”, e como isso caiu (e ainda pode cair) em um pensamento opressor e colonialista. Para a escritora britânica, “toda narrativa é um convite para adentrar um espaço paralelo, uma arena hipotética, em que se tem acesso imaginado a quem não é você”, e, por isso, a ficção é o locus da empatia e da compaixão. No entanto, Smith sabe que não é tão simples assim e se pergunta se a ficção é um espaço de controle ou de compaixão — ela deixa para o leitor decidir.

González de alguma forma responde a esse questionamento de Smith no ensaio “A menina na cédula de dez pesos. Notas sobre escrita e violência de gênero”, em que reflete sobre como as histórias de meninas mortas são contadas, de forma banalizada e fetichizada. É preciso, então, descobrir um outro jeito de narrar esses casos, sem tratá-las apenas como vítimas, mas como seres humanos. Da mesma forma, devemos repensar como contamos a história das escritoras, tirando-as dos seus pedestais de genialidade. São necessárias outras narrativas para vermos que não estamos sozinhas e que não, não precisamos ser geniais, simplesmente podemos ser escritoras.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de Direito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).