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Em sua vastidão de forma e alcance, Solenoide concilia sonho e vigília por meio da prosa labiríntica de um professor sem nome e seus devaneios
07jul2025Há alguns anos, Massimo Rizzante publicou um ensaio que segue útil para se pensar objetos literários não identificados como Solenoide, do romeno Mircea Cărtărescu. “O romance do século XXI”, do crítico italiano, sugere que a ficção contemporânea, “o romance de criação, que já tem o mesmo público que a poesia, e não a avalanche de produtos literários escritos fora da história do romance”, ao menos a ficção que importa não apenas por seu valor comercial, passa pelo documental, pelo cosmológico e pelo onírico. Em sua vastidão de forma e alcance, é determinante em Solenoide a presença do devaneio e do delírio, mas não somente, pois talvez a marca da obra-prima seja liquidificar as tendências identificadas por Rizzante, mesclando-as; nisso, trata-se de obra total, que concilia noite e dia, sonho e vigília, ficção e realidade.
A trama, espalhada por quase oitocentas páginas, é irredutível, podendo ser resumida somente de modo aproximativo. Alguns dos núcleos narrativos são reunidos no diário escrito pelo protagonista sem nome (que termina por ser o livro em si), cujas inegáveis semelhanças com a realidade jogam com a biografia do próprio Cărtărescu. Entre essas coincidências entre personagem e autor, está o poema “A queda”, de 1976, incluído na reunião da poesia do romeno publicada em diversos países, ainda inédita (como grande parte de sua obra) no Brasil.

O evento disparador do diário que alinhava a narrativa de Solenoide é a leitura pública em um sarau de “A queda”, longo poema dividido em sete partes, e a consequente incompreensão manifestada pelos colegas diante de suas imagens indecifráveis. A partir dessa ocasião, o narrador, um professor de escola pública da periferia de Bucareste, autodetermina-se um escritor fracassado, atendo-se ao seu “relatório de anomalias”. O início do romance o flagra num momento nada idílico: “Peguei piolho de novo, nem me admiro mais, nem me assusto mais, nem fico mais com nojo. É só coceira”.
A rotina da Escola 86, isolada no bairro periférico e povoada de alunos piolhentos e colegas docentes carismáticos, pontua em grande parte as descrições registradas pelo narrador, correspondendo à sua dimensão realista e diurna. Essa gramática se estende às suas origens proletárias, ao seu próprio período como estudante no liceu e depois na faculdade de letras (é professor de literatura), resultando num personagem marcado desde o início por intensa solidão. A incompreensão dos outros alunos (que, estupefatos, o veem ler poemas nos intervalos das aulas no colégio, sentado à beira do tanque de areia) é a mesma dos pais, que o internam em um sanatório para tratar de tuberculose, e a progressiva ostracização envolve a existência (não reconhecida pelos pais) do irmão gêmeo falecido logo após o nascimento, além de hospitalizações inexplicáveis e uma cirurgia enigmática.
O rigor realista serve de suporte para o salto ao delírio noturno do protagonista anônimo
Como na melhor literatura fantástica, a prosa de Cărtărescu se apoia na precisão descritiva do modorrento ambiente escolar e das ruas do bairro, sem contar o detalhismo obsessivo de extração barroca, retratando o dia a dia da Romênia comunista dos anos 70 e 80 através do formidável painel representado pelos professores e sua rotina. A vivacidade do rigor realista serve de suporte para o salto ao delírio noturno do protagonista anônimo, e a cidade acompanha o apagar das luzes da razão lógica, sendo substituída pela casa que ele adquire de um inventor, seu Mikola, numa periferia ainda mais distante, uma periferia periférica, digamos, infestada por ciganos.
Desde o início, o papel cumprido por Bucareste (há uma curiosa comparação com Brasília, ambas cidades planejadas) promove a capital à categoria de personagem que rouba a cena: sua decadência, cinzenta como a expressão de seus habitantes, imprime às avenidas, praças, bairros e escolas decrépitas a qualidade de um enorme depósito de sonhos desfeitos. Labiríntica como a prosa do autor, Bucareste se torna metáfora dessa escrita deambulatória, que explora a cidade melancólica de bonde, de cuja janela o narrador/protagonista testemunha as décadas sob o tacão de Ceaușescu, ditador do país entre 1966 e 1989:
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Dia após dia tomo o bonde da Teiul Doamnei ou da Doamna Ghica (uma de minhas poucas liberdades de escolha) e mergulho na leitura, de pé, preso numa aglomeração de gente que cheira mal, uns a salame, outros a urina, outros a lã de ovelha.
Quando o protagonista chega ao ponto final, a caixa-d’água se levanta, enferrujada, acima da paisagem amplíssima, e ele vislumbra
fábricas, a maior parte delas abandonadas, com vidraças quebradas, depósitos de lenha, quiosques de suco e biscoitos. Algumas ameixeiras, torturadas como mártires, entre os trilhos do bonde. Enegrecidas por toda a fuligem do mundo.
Bobina helicoidal
A casa comprada de seu Mikola imita a estrutura de um barco, e abriga em seu subsolo o solenoide referido pelo título. Trata-se de uma bobina helicoidal ligada a um conjunto de fios condutores que cria um campo eletromagnético de força ao seu redor, traduzindo energia elétrica em tração mecânica. O campo magnético altera o espaço do entorno e a percepção dos personagens, transcendendo sua definição física de dispositivo eletromagnético para se tornar uma poderosa metáfora central que organiza a estrutura e a temática do romance.
Mas metáfora de quê? Instalado sob a casa construída pelo inventor, o solenoide representa um ponto focal, um mecanismo que permite a fuga da realidade opressora e melancólica de Bucareste e da própria existência mundana do professor. Na cabine da casa-barco suburbana, a estranha cadeira de dentista deixada por seu Mikola serve de ponte de comando para a nave, o solenoide na narrativa simbolizando a concentração da subjetividade, da memória, do sonho e do desejo de transcendência, como um portal ou motor para acessar dimensões alternativas, realidades oníricas e estados alterados de consciência, oferecendo uma via de escape não através da física, mas da exploração radical do eu.
Sem dúvida, o solenoide é metáfora para a própria literatura e sua inconformidade diante das limitações da vida — a literatura que o diarista lê (Müsil, Strindberg, Dagmar Rotluft, Rilke, uma infinidade de autores, e, claro, os diários de Kafka), além de também escrevê-la em seu caderno.
Em contraposição ao fracasso causado pela incompreensão do poema “A queda”, a ascensão do protagonista é alavancada pelo rompimento da lei da gravidade provocado pelo solenoide: Irina, a professora que se torna amante do professor, pressiona inadvertidamente um botão acima da cama onde ambos transam, e eles levitam, amando-se em pleno ar. Bem mais adiante, a descoberta de que cada casa de Bucareste tem no subsolo seu próprio solenoide dá lugar a uma cena de sonho, na qual a própria cidade sobe aos ares. O erotismo e a fantasia, ainda que sombria, atam suas pontas.
O solenoide é metáfora para a própria literatura e sua inconformidade diante das limitações da vida
A tentativa de fuga da realidade que move o narrador é impulsionada através de túneis, quartos e mensagens secretas que lhe chegam por meio dos livros, mas também de inscrições inusitadas, de códigos ocultos até mesmo em tatuagens. Sua fuga é dispersada, ou multiplicada, nas desaparições de conhecidos, na proliferação de personagens e seitas misteriosas, em teorias matemáticas que o atraem e o confundem, e na cidade que se une simbioticamente à casa-navio numa verdadeira ramificação de portas, passagens e becos sem saída. Resultando num vertiginoso olhar em abismo não totalmente desprovido de momentos de tédio, nem de repetição, as narrativas nascem dentro de outras narrativas, restaurando a característica dobra barroca do sonho que se sonha dentro de um sonho.
Fabulação mística
Em sua defesa do onírico, o crítico Massimo Rizzante recorda a lição de Milan Kundera em A arte do romance, na qual o tcheco metamorfoseado em francês ensina que foi Kafka a despertar repentinamente a imaginação adormecida do século 20, “conseguindo aquilo apenas postulado pelos surrealistas depois dele sem consegui-lo de todo: a fusão do sonho com a realidade”. Segundo Kundera, Kafka descobriu o romance como o lugar onde a imaginação “pode se libertar do imperativo aparentemente inescapável da verossimilhança”.
Certamente, a fabulação bizarra e algo mística de Cărtărescu também bebeu em mestres da Europa Central do talhe de Bruno Schulz, Witold Gombrowicz e, mais recentemente, Danilo Kiš; ou da América Latina, como Carlos Fuentes, Juan Carlos Onetti, Julio Cortázar e Lezama Lima.
Além do parentesco mais evidente que se deve à semelhança da extensão narrativa, sem dúvida a ficção de Cărtărescu sofreu forte influência de Jorge Luis Borges, aquele mesmo poeta obcecado pelas teorias filosóficas do aviador e físico popular irlandês J.W. Dunne acerca do tempo serial, teorias que, mesmo depois de se mostrarem um tanto frágeis, nunca chegaram a perder por completo seu fascínio. Por outro lado, o romeno ignora olimpicamente a lição literária oferecida pelo mestre argentino no prefácio de Ficções (1944), compondo, ao contrário, vastos livros de mais de quinhentas páginas, em vez de se conformar ao resumo e ao breve comentário preconizados por Borges. Para a fortuna da literatura contemporânea, tão pisoteada pelo pisado e pelo repisado, Mircea Cărtărescu optou por escrever livros que não existem.
P.S.: A tradução de Fernando Klabin é excelente, e só podemos agradecê-la. A amabilidade, claro, vem acompanhada de segundas intenções: a esperança de que em breve tenhamos mais livros de Cărtărescu à disposição.
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