
Literatura,
Piglia e seus duplos
No primeiro volume de seu diário, autor argentino narra os dez anos decisivos em que amadureceu sua escrita
13nov2018 | Edição #7 nov.2017Quando Ricardo Piglia tinha dezesseis anos, sua família mudou-se de Adrogué, onde ele nasceu, para Mar del Plata. Era praticamente uma fuga: depois do golpe que dois anos antes derrubara Perón, seu pai havia passado quase um ano preso, e agora a família tinha que buscar abrigo mais seguro. “Nesses dias, em meio à debandada, num dos cômodos desmantelados da casa, comecei a escrever um diário. O que eu procurava? Negar a realidade, recusar o que estava por vir. Ainda hoje continuo escrevendo esse diário”. A redação acompanhou sua formação pessoal e literária, os primeiros livros e a consagração como um dos principais escritores argentinos do século 20. Os leitores já sabiam do diário: o autor o mencionara em livros e entrevistas e, vez ou outra, chegou a cogitar publicá-lo.
Em 2012, Piglia decidiu organizar as anotações que, quase seis décadas depois do início, se espalhavam por 327 cadernos. Recém-aposentado na Universidade de Princeton, ele retornava definitivamente à Argentina. A transposição das notas para livros levou cerca de quatro anos e gerou três volumes. O primeiro deles, Anos de formação, saiu em língua espanhola em setembro de 2015. Simultaneamente, foi lançado o documentário 327 cuadernos, de Andrés Di Tella. O cineasta filmou Piglia desde sua despedida de Princeton e registrou o passo a passo da edição. A conjugação livro/filme não é casual: da mesma forma que o cinema parece revelar, mas a rigor engana, também um diário — ou autobiografia — sugere acesso franco e direto à realidade, para em seguida negá-la e recobri-la com sucessivas camadas de reelaboração discursiva da experiência vivida.
Com Piglia não é diferente. Nas páginas do livro e nas sequências do filme, expõem-se as estratégias de burla e a proliferação de sentidos e vozes: da leitura dos cadernos à escolha (ou descarte) dos fragmentos, da reescrita às sucessivas revisões, da mão que os escreveu por décadas à intermediação da assistente que acompanhou Piglia, bastante doente, nos últimos anos. Assim, a agilidade e a instantaneidade do registro diário foram trocadas pelo ritmo necessariamente lento da construção de um livro. Também a ordem cronológica das entradas sucumbiu ao trabalho seletivo: “Transcrevo meu diário sem seguir uma ordem cronológica, isso seria terrível e muito tedioso, disse. Viajo no tempo, pego os cadernos ao acaso e às vezes estou lendo minha vida em 1964 e de repente já estou no ano 2000 […] meus cadernos são minha máquina do tempo”. Claro que nem tudo o que estava no diário aparece em livro: certos cadernos foram destruídos — as chamas que queimam alguns deles no documentário atestam a literalidade do gesto de eliminação de parte do passado escrito.
Personagem autoral
Nesse processo cheio de contrastes, o que era documento íntimo e pessoal metamorfoseou-se em material publicado — tornado público — e assumiu estatuto literário; o que se supunha desmistificador era mais um lance na construção de uma obra e de uma persona literária. O diário, agora sob forma de livro, reitera a resposta à pergunta inicial sobre o motivo de escrever um diário: Piglia não pretendia buscar a realidade, queria negá-la.
Portanto, ninguém pode se sentir enganado: a sobreposição de telas no passado é explicitada desde o título, Os diários de Emilio Renzi. Mas quem é Emilio Renzi? Para o leitor, é um personagem recorrente. Aparece em sua obra desde a década de 60, assina crítica, protagoniza contos e atua nos cinco romances de Piglia. Muitos críticos preferem descrever Renzi como um alter ego: seu segundo eu, seu outro lado, sua projeção e sombra no texto. A associação soa ainda mais perfeita se lembrarmos que o nome completo do escritor é Ricardo Emilio Piglia Renzi — ou seja, Renzi está em Piglia, faz parte de Piglia.
A relação, porém, é mais complexa, como já mostram as primeiras linhas. Na “Nota do autor” — logo, supostamente indicativa da pessoalidade do relato —, o narrador alerta para a duplicidade Piglia/Renzi ao usar a terceira pessoa para se referir ao autor do diário e aspas, recurso de citação, para lhe dar voz: “Tinha começado a escrever um diário no final de 1957 e ainda continuava a escrevê-lo. Muitas coisas mudaram desde então, mas ele permanecia fiel a essa mania. ‘Claro que não há nada mais ridículo do que a pretensão de registrar a própria vida. Você imediatamente vira um clown’, afirmava. Mesmo assim, ele está convencido de que, se uma tarde não tivesse começado a escrevê-lo, nunca teria escrito mais nada”. O narrador explica: “[…] de todos os signos da linguagem, o Eu é o mais difícil de controlar, o último que a criança adquire e o primeiro que o afásico perde. A meio caminho entre ambos, o escritor adquiriu o hábito de falar de si mesmo como se falasse de outro”.
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A estratégia é clara: falar de si como se fosse outro, em terceira pessoa, olhar de fora para si, afastar-se da experiência para lhe atribuir significados e restaurá-la, não mais como realidade ou memória, e sim como ficção. Os diários situam-se “a meio caminho”, e é nesse intervalo que se imiscui a imaginação, é essa brecha que a memória perscruta para visitar e o passado, interpretá-lo e reinventá-lo na narrativa, reiterando a decisão de externalizar a autoria de um relato que, a princípio, parece tão pessoal, verídico e intransferível como ocorre com um diário. A assinatura de Renzi estetiza a relação entre vida e escrita, afasta qualquer compromisso com a verdade, reivindica o espaço da ficção e desvenda o estatuto literário do texto.
A única aposta
A literatura, de resto, é a preocupação principal de Anos de formação, que agora sai no Brasil na tradução extraordinária de Sergio Molina, que manteve a fluidez do original e captou com precisão e rigor as oscilações de tom e a variada intensidade das vozes de Piglia/Renzi. Embora os dois volumes posteriores de Os diários de Emilio Renzi — Os anos felizes, de 2016, e Um dia na vida, de 2017, ainda inéditos por aqui — também reflitam prioritariamente sobre literatura, é no livro inicial, que cobre o período de 1957 a 1967, que ela desponta como objetivo de vida e trabalho do narrador. Ele se prepara para ser escritor, quer imergir no mundo da ficção e da crítica.
A literatura é sua única aposta (“tenho que entender que somente minha literatura interessa […]. Sou alguém que apostou a vida numa única cartada”), mas a escrita ainda é um alvo na noite, caminho enigmático a ser trilhado num mundo que precisa ser criado, em que o Eu e o outro se confundem, ora se expõem, ora persistem secretos. “Na literatura, acho, o fundamental é ter um mundo próprio. No meu caso, esse material é secretamente autobiográfico e depende da infinidade de histórias familiares que fui escutando ao longo da vida”, escreve em janeiro de 1964, para em seguida observar as hesitações da memória e a sobreposição de temporalidades: “Por alguns momentos estou em outro tempo, não se trata de uma lembrança, e sim, antes, de voltar a viver as emoções do passado. […] Enfim, queria estabelecer uma distinção entre recordar e viver — ou ver-se viver — no passado”. O desassossego do narrador não se restringe à esfera pessoal; inclui a constatação acerca do lugar da literatura num período de forte tensão política dentro e fora da Argentina, como quando afirma — talvez antecipando a noção de “ficção paranoica” a que se dedicou tantos anos depois — que “a literatura seria uma alternativa às manipulações da linguagem e aos usos da ficção por parte do Estado”.
Ou na interpretação que ensaia a partir da leitura de Dashiell Hammett: “Por que se narra dessa maneira? Porque nesse mundo tudo está em perigo, todos se sentem vigiados e a violência pode explodir a qualquer momento. O procedimento narrativo dá a entender tudo isso sem dizê-lo”.
Neste primeiro volume, os registros funcionam como um romance ou uma das máquinas narrativas que tanto fascinavam Piglia: contam a história linear da formação de um escritor. Acompanhamos sua infância e os casos que ouviu do avô Emilio, que lutou na Primeira Guerra Mundial por causa de uma paixão. Conhecemos os cursos que fez na Universidade Nacional de La Plata, os debates com professores e colegas, as relações familiares e com as mulheres, os amores e a redação dos primeiros textos. Estrategicamente, os capítulos alternam o dia a dia com material ficcional — microcontos, esboços —, novamente indeterminando as fronteiras entre realidade e ficção. Não por acaso, o aprendizado do narrador deriva mais do mundo que lê que do mundo que vê: “É com os escritores imaginários que eu aprendo o que quero fazer. Por exemplo, Stephen Dedalus ou Nick Adams. Leio suas vidas como um modo de entender do que se trata. Não tenho interesse em me inspirar nos escritores ‘reais’”.
Piglia referiu-se aos diários como ‘o romance de uma vida’, e é isso que eles são: um gradual desvelamento das leituras e das experiências
Passear pelas páginas de Anos de formação permite, ainda, compilar a vertiginosa lista de livros e leituras que movem Renzi/Piglia nesses dez anos: Proust, Lionel Trilling, Melville, De Amicis, Dickens, Verne, Gadda, Sarmiento, Flaubert, Gombrowicz, Woolf, Kipling, Güiraldes, Chesterton, Sartre, Andreiev, Faulkner, Camus, Onetti, Salinger, Gógol, Heidegger, Bioy Casares, Scott Fitzgerald, Kafka, Bellow, Dostoiévski, Walsh, Henry James, Roa Bastos… Nessa lista imensa e incrivelmente variada, Joyce, Pavese, Arlt, Hemingway e Borges têm lugar privilegiado. É borgiana, aliás, a insistência do narrador em ressaltar o primado da leitura sobre a escrita. Logo no início, ao comentar sua relação com os livros que leu, atesta: “Como li alguns dos meus livros poderia ser o título de minha autobiografia (caso a escrevesse). Primeiro ponto, portanto, os livros da minha vida mas nem todos os que li, e sim aqueles dos quais lembro com nitidez a situação e o momento em que os lia. Se eu me lembro das circunstâncias em que estava com um livro, isso para mim é a prova de que ele foi decisivo. […] Um livro na lembrança tem uma qualidade íntima somente se vejo a mim mesmo lendo. Estou do lado de fora, distanciado, e me vejo como se fosse outra pessoa (sempre mais jovem)”. A autobiografia como colagem de leituras; passado cifrado nas lembranças dos momentos vividos com livros cujo significado literário pode ser irrelevante, pois eles valem pela persistência na memória, pela capacidade de iluminar cenas vividas, pelas “emoções associadas ao ato de ler. E muitas vezes atribuo a esses livros a paixão da época (que já esqueci)”. Falar de si como se estivesse fora, combinar o Eu ao outro e jamais discerni-los nessa — como diz a bonita epígrafe proustiana — “multiplicação de si mesmo, que é a felicidade”.
Beatriz Sarlo — com quem Piglia trabalhou, nos anos 1970 e 80, na decisiva revista Punto de Vista — já escreveu que a tradição literária argentina, desde meados do século 19, indeterminou as fronteiras entre gêneros, e assim o ensaísmo pôde se misturar à ficção, à história, ao jornalismo, à etnologia, ao comentário político e ao relato pessoal. É nessa confluência de registros, diferentes entre si mas intercambiáveis, que Anos de formação mescla história, memória, ficção e crítica. É nesse terreno que o diário constrói seus duplos: público/privado, instantaneidade/lentidão, memória/história, leitor/escritor, passado/presente, verdade/ficção, Piglia/Renzi.
Mais de uma vez Piglia referiu-se aos diários como “o romance de uma vida”, e é isso que eles são: um gradual desvelamento de leituras e experiências, uma autobiografia produzida no dia a dia — e décadas depois reinventada ficcionalmente —, um olhar de estranhamento e vertigem sobre o passado. Anos de formação é um livro essencial e definitivo: radiografa os mecanismos de construção da memória e problematiza a figura do autor, fazendo-a vagar entre a condição de narrador e a de personagem. Sobretudo: reafirma a centralidade da ficção como estratégia crítica para lidar com a sempre inquietante prolixidade do real.
Matéria publicada na edição impressa #7 nov.2017 em junho de 2018.
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