Literatura,
Literatura se faz ao andar
Em livro, autor suíço conta dos passeios que fez com Robert Walser, escritor que fugia da grandeza literária
01jun2021 | Edição #46Poucos autores cultuados da atualidade são tão anacrônicos quanto Robert Walser (1878–1956). O suíço, muitas vezes vendido de forma precipitada como “precursor de Kafka” (pois o tcheco era seu admirador), produziu romances, contos, poemas e breves textos inclassificáveis tratando da paisagem montanhosa, de caminhadas sem rumo, de pequenas observações cotidianas, tudo em ritmo vagaroso, com personagens que parecem sentir prazer na obediência e na disciplina.
Em resumo, trata-se de um escritor em descompasso com a modernidade acelerada e com as disputas culturais e políticas que dominam nossa cena literária. No entanto, a obra de Walser foi objeto de estudo do sul-africano ganhador do Nobel J. M. Coetzee, além de ser muito citada pelo espanhol Enrique Vila-Matas e pelo alemão W. G. Sebald. Isso levou a uma espécie de ressurreição tardia do escritor, que passou a ter seus livros publicados no Brasil apenas nos anos 2000, talvez na esteira do grande interesse por ele no mercado norte-americano.
Mentira — Walser seguiu produzindo em qualquer pedaço de papel ao seu alcance, desde o verso de um cartão de visita até tiras de papel higiênico, criando em uma caligrafia diminuta textos impossíveis de rotular. Eles foram reunidos na compilação Microscripts (inédito no Brasil). Em 1956, Walser morreu durante uma das longas caminhadas que fazia a partir do sanatório, afundado na neve, de maneira similar ao personagem Sebastian, poeta sensível que integra sua obra-prima Os irmãos Tanner (1907).
Apagamento
A produção de Walser talvez tivesse permanecido uma curiosidade conhecida apenas por acadêmicos suíços se não fosse pelo trabalho de seu patrono e divulgador, Carl Seelig — uma espécie de Max Brod (amigo e testamenteiro de Franz Kafka) desta história. Seelig acompanhava Walser em suas caminhadas e registrou-as com humor e devoção em Passeios com Walser, que a editora Papéis Selvagens acaba de publicar em edição com prefácio de Bernardo Carvalho, notório entusiasta da obra de Walser.
Por um lado, o livro reforça algumas das características mais louvadas em Walser. O autor é retratado como um sujeito de silêncios profundos e comentários delicados; Coetzee disse certa feita que se recusava a chamá-lo de “grande autor”, pois não havia ninguém mais distante da grandeza que Walser, que sempre buscou ser apagado, olvidado.
Nas conversas trocadas entre escritor e editor, Walser dá algumas pistas de seu processo criativo: “De antemão duvido de escritores que se sobressaem pelo enredo e necessitam do mundo inteiro para seus personagens. As coisas cotidianas são suficientemente ricas e belas por si só para que delas possamos provocar uma fagulha poética”.
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Onde está a ação nos contos de Walser? Em abrir a janela e ver o mundo, em sair de casa pronto para se deslumbrar com os acontecimentos mais ínfimos. É notório o começo de Der Spaziergang (O passeio), no qual o narrador está de saco cheio de ficar sozinho na sua escrivaninha em um quarto “povoado de fantasmas” e sai para dar uma volta, quando interage com estranhos e, principalmente, com a paisagem bucólica, passando por uma espécie de revelação metafísica sobre a finitude da vida e os limites de nossa experiência ao final.
Esse Walser também está presente nas entrevistas em movimento de Seelig: “Quando nos despedimos, talvez como alusão indireta à sua enfermidade, ele diz: ‘Também é preciso haver transtornos na vida humana para que assim as coisas belas se separem vividamente das feias. A preocupação é a melhor das educadoras’”. A busca constante por uma beleza singela é justificada pelo próprio Walser em outro momento, ao comentar que os seus irmãos nunca tiveram filhos, assim como ele, e por isso nunca fizeram a transição para a paternidade, permanecendo com uma visão ingênua e infantil do mundo, o que lhe daria, ele argumenta, uma “sensibilidade máxima”.
Literatura imperialista
Se por um lado o livro de Seelig reitera uma opinião já bem estabelecida sobre o autor em questão, por outro cumpre também o papel de toda biografia séria, isto é, mostrar que nenhum artista é apenas a identidade que busca construir. Em diversos momentos, é possível vislumbrar um Walser mesquinho, preocupado com intrigas da cena literária, sentindo inveja e rancor. Ainda bem! Walser é humano e falho.
No entanto, é na defesa do mínimo, do sutil, do próprio apagamento e do desaparecimento que se produz o charme de sua ficção. Como conta a Seelig: “Hoje os escritores aterrorizam os leitores com seus trambolhos aborrecidos. Não é nenhum sinal de bom gosto de nosso tempo que a literatura se mostre tão imperialista. Antigamente ela chegou a ser modesta, benigna. Hoje ela possui uma vontade de domínio”.
Passeios com Walser é um presente delicado a todos os fãs do autor suíço, e essa edição ainda conta com um excelente posfácio, no qual o tradutor da obra, Douglas Pompeu, realiza o trajeto das caminhadas e o registra em um diário. Ele nos mostra quanto o estilo de Walser pode ser contagioso, agindo como um modelo de discrição, modéstia e silêncio para épocas de gritaria e exposição de si.
Matéria publicada na edição impressa #46 em abril de 2021.
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