Literatura,

Ó Lima! Ó Lobato!

Cartas mostram as afinidades eletivas entre o homenageado da Flip e o editor paulista

09nov2018 | Edição #3 jul.2017

Fontes epistolares são caixas de surpresas. Por vezes, conhece-se apenas um dos lados da troca de correspondências: os textos da pessoa que envia as cartas ou do parceiro que as responde. Por vezes, parte das mensagens some, deixando imensas lacunas para os futuros leitores. Por vezes, ainda, como esses são documentos de foro privado, algumas situações ou expressões são de difícil compreensão. Pois bem, essas são as agruras e as delícias de A correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto.

A publicação recupera a troca de cartas que se entabulou entre esses dois intelectuais de 1918 a 1922, data da morte de Lima. O material foi veiculado originalmente no ano de 1955, em livro de autoria de Edgard Cavalheiro, um grande especialista na obra de Lobato. Por sua vez, a nova e cuidadosa edição da Verso Brasil, e que conta com a organização de Valéria Lamego, apresenta uma série de documentos vinculados à vida dos dois autores e boa parte do conjunto das cartas legadas por eles.

É curioso, porém, que não esteja incluída entre as fontes uma primeira troca de correspondência, datada de 2 de setembro de 1918. O início dessa história saborosa não se inicia em finais do mesmo ano, com a negociação da publicação de Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá por Lobato. Antes disso, o editor paulista, na época diretor da Revista do Brasil, tomou a iniciativa de convidar Lima para colaborar na publicação e esbanjou elogios: 

“A Revista do Brasil deseja ardentemente vê-lo entre os seus colaboradores. Ninho de medalhões e perobas, ela clama por gente interessante, que dê coisas que caiam no gosto do público. E Lima, mais do que nenhum outro, possui o segredo de bem ver e melhor dizer, sem nenhuma dessas preocupaçõezinhas de toilette gramatical que inutiliza metade de nossos autores. […] A confraria é pobre, mas paga, por isso não há razão para Lima Barreto deixar de acudir ao nosso apelo. Aguardamos, pois, ansiosos a resposta, uma resposta favorável. Do confrade (a) Monteiro Lobato”.

Lima era tratado na terceira pessoa, festejado por seu Policarpo e retratado da forma que mais apreciava: como o lado oposto dos medalhões. A carta atingiu os anseios mais íntimos do escritor de Todos os Santos, e foi ela que deu início a essa curta mas sincera amizade.

Como bem mostra Lamego, os dois não podiam ser mais diferentes. Lobato era um paulista empreendedor, que nesse contexto introduzia práticas editoriais arrojadas, como fica evidente na carta acima. Retirando a aura que envolvia o pequeno mundo das letras brasileiras, afirmava, com vontade de chocar, que “livro é sobremesa”. Já Lima era um carioca “de ampla circulação local”: seu circuito literário incluía o centro do Rio, mas também os subúrbios onde residia. 

Era boêmio por vocação e gosto, irônico por costume e atitude, relaxado no modo de se vestir e de falar. Outro dado que os distinguia era a forma final das cartas que enviavam mutuamente. Lobato mandava missivas sem máculas, ou então escritas à máquina, em papel timbrado. Lima encontrava uma folha qualquer — a da livraria de seu amigo Schettino ou um rascunho dos almaços do Ministério da Guerra, onde trabalhara até aquele ano de 1918 — e soltava os garranchos. A despeito da profissão de amanuense, que demandava caligrafia elegante, o escritor fazia pouco de sua letra, que julgava “naturalmente má”, só comparável à sua inserção social, em tudo marginal.

Amizade improvável

A amizade parecia improvável, mas depois de Lima ter entregado a Lobato o conto “O moleque” — publicado anteriormente na revista A.B.C., de 15 de junho de 1918 — a conversa engatou. Tanto que o carioca animou-se e remeteu outro original: era o romance sobre o amanuense andarilho, Gonzaga de Sá, que ele escrevia e reescrevia desde 1906.

A partir daí seguimos a publicação da Verso Brasil, que permite entender como, naquela circunstância, o escritor de Todos os Santos andava com a clavícula quebrada; consequência de mais uma das suas muitas bebedeiras. Encontrava-se no hospital, aliás, quando teve a ideia de despachar o original, cheio de garatujas, para São Paulo. Cauteloso e acostumado a levar negativas, Lima pediu ao amigo Noronha Santos que revisasse tudo e fez um adendo: “Você deve anotar onde está ‘Afonso’ que eu quero cortar”. Lima se identificava tanto com seu protagonista, também amanuense, que, num primeiro momento, batizou-o com o seu próprio nome. Logo desistiu para adotar Gonzaga de Sá.

O editor não só aprovou o livro como incluiu uma oferta generosa no documento que despachou para selar o acordo: 

“Recebi a sua carta de 9 do corrente, e com ela os originais, que não li, nem é preciso, visto como estão assinados por Lima Barreto. A Revista do Brasil tem muito gosto em editar essa obra e o faz nas seguintes condições: como é pequena, podendo dar um volume só de 150 pgs. mais ou menos, convém fazer uma edição de 3.000 exemplares em papel de jornal que permita vender-se o livro a 2$000 ou no máximo 2$500; neste caso, proponho 50% dos lucros líquidos ao autor, pagáveis à medida que se forem realizando. Podemos fazer mais outra proposta: a Revista explorará a primeira edição tirada nas condições acima, mediante o pagamento de 800$000 no ato da entrega dos originais; ou de 1:000$000 em duas prestações — uma de 500$000 pela entrega dos originais e a outra três meses depois de saído o livro […]”.

A pronta reação de Lobato deve ter animado o acamado Lima. Além de ver o seu livro editado por uma das casas mais inovadoras de sua época, era a primeira vez que ele recebia um adiantamento em dinheiro. Convertendo o valor para os números de hoje, o escritor deve ter colocado no bolso pouco mais de R$ 16 mil, o que há de ter aliviado suas dívidas domésticas.

O bom relacionamento foi sendo alimentado pelas duas partes. O amanuense tratou de devolver a atenção ao publicar, na Revista Contemporanea, de 22 de fevereiro de 1919, uma resenha sobre O problema vital, que Lobato lançara no ano anterior. Elogioso, comemorava: “Poucas vezes se há visto nos meios literários do Brasil, uma estreia como a do sr. Monteiro Lobato”. Mas Lima também escarnecia: para ele, era de “admirar em tal autor e em tais obras, que ambos tenham surgido em São Paulo, tão formalista, tão regrado”. 

Se o carioca abria mão de criar uma desavença com Lobato, São Paulo e sua arena literária continuavam na mira do escritor, que implicava com a “retórica trapalhona de descrições de luares com palavras em ‘l’ ‘l’ e de tardes de trovoadas com vocábulos com ‘r’ ‘r’ dobrados; São Paulo, com as suas elegâncias ultra-europeias…”.   

Tal carioquismo ainda custaria caro ao colunista, mas o certo é que ele abria uma “estranha” exceção quando se tratava de Lobato. “A sua roça, as suas paisagens não são coisa de moça prendada, de menina de boa família […]; é da grande arte dos nervosos, dos criadores, daqueles cujas emoções e pensamentos saltam logo do cérebro para o papel ou para a tela. […] O seu livro é uma maravilha nesse sentido, mas o é também em outro, quando nos mostra o pensador dos nossos problemas sociais, quando nos revela, ao pintar a desgraça das nossas gentes roceiras, a sua grande simpatia por elas. Ele não as embeleza, ele não as falsifica: fá-las tal e qual.”

Se a elite literária paulistana era comparada à imagem de uma “menina de boa família”, Lobato virava seu “confrade” na “arte dos nervosos”. Na mesma coluna, ainda, Lima analisa o deficiente saneamento do interior do Brasil, foco de O problema vital. Denuncia, então, as precárias moradias da população pobre e pede pela “reforma agrária” para “fazer desaparecer a fazenda”. O “problema vital”, na opinião do cronista, era não só sanitário, como queria o paulista, mas de “natureza econômica e social”. Seria preciso “combater o regime capitalista na agricultura, o latifúndio, dividir a propriedade agrícola, […] dar a propriedade da terra ao que cava a terra e planta e não ao doutor que vive na ‘Casa Grande?”. Impossível deixar escapar que o autor da obra em questão era ele próprio fazendeiro e “Doutor”.

Como se vê, não tanto nas cartas, mas nos artigos coetâneos, o carioca não deixava de interpelar o colega, enumerando os problemas que grassavam no país, entre eles a falta de distribuição de terras. O embaraço não era só “médico”, era “estrutural”, e nesse debate o autor de Isaías Caminha estava sempre uma nota acima da partitura do colega.

Mesmo assim, não há como saber por que Lima esquivou-se da polêmica em torno do personagem criado por Lobato também em 1918, na coletânea Urupês: o Jeca Tatu. Era conhecida a amizade do editor com o médico Renato Kehl, um dos defensores da eugenia no Brasil. O criador de Policarpo, por seu lado, era abertamente contrário a esse tipo de modelo racial, e a diferença de opiniões bem que poderia ter azedado a amizade nascente entre os dois.

Nenhum ruído, porém, se avolumou entre eles. Em 26 de dezembro de 1918, Lima apenas acusa o recebimento da obra e toca de leve o tema: 

“Vi, por ele, que você sustenta muita coisa sobre o nosso sestro nacional de caboclismo, muita coisa que é da minha opinião […] Vou ler o livro de você e falarei de qualquer modo sobre ele, em uma qualquer revisteca daqui”. 

Lima evitou meter, entretanto, o bedelho na polêmica em torno do Jeca Tatu. Para desanuviar o clima, explicou que tencionava escrever a respeito, tão logo sua aposentadoria estivesse “em bom caminho”: 

“Não se assuste você com essa minha precoce aposentadoria. Eu ando sempre depressa nessas coisas oficiais e depressa elas me aborrecem. Matriculei-me com menos de dezesseis anos na Escola Politécnica e não sou doutor em coisa alguma — graças a Deus!”.

Boa camaradagem

O livro deixa claro como a correspondência lembra a boa camaradagem, não sem certa disposição para maledicências sobre desafetos de um e de outro. Em 28 de dezembro de 1918, Lobato escreve ao confrade: “Cá entre nós: não sou literato, nem quero ser, porque o João o é”.

Alisando-lhe o ego e fazendo seus os inimigos de Lima, o autor de Urupês se refere criticamente ao cronista João do Rio, contra quem, aliás, ambos cometeriam graves injustiças. E continua: “O Brasil é a terra onde o certo dá errado e o errado dá certo. Quando ouço te criticarem a vida desordenada — e leio por outro lado os teus livros, firma-se-me a ideia supra. E cá comigo: se o ‘ordenam’, em vez de Policarpos, o Lima engorda e emudece”.

Em outra missiva, Lobato tratou de animar o amigo, afirmando que “mais tarde será nos teus livros e nalguns de Machado de Assis, mas sobretudo nos teus, que os pósteros poderão ‘sentir’ o Rio atual com todas as suas mazelas de salão por cima e sapucais por baixo. Paisagens e almas, todas, estão tudo ali”. 

A intenção de Lobato era consolar o colega que, mais uma vez, não tivera sucesso na sua candidatura a uma cadeira da Academia Brasileira de Letras. Como Lima alegasse “não combinar” com a instituição, “por causa da desordem da minha vida urbana”, o escritor paulista rebatia acionando, ironicamente, a clave que mais tocava o autor de Clara dos Anjos: “Enfim, são brancos, digo imortais, lá se entendem”.  

Lima adiava abordar questões mais ardidas, que os dividiriam, e tinham calibre para detonar a amizade. Esses são apenas poucos exemplos dessa comunicação de quase quatro anos. Tal qual telefone sem fio, a compilação de Edgard Cavalheiro, novamente disponível ao público na edição organizada por Lamego, traz boa parte das cartas. Já Francisco de Assis Barbosa, que escreveu uma biografia fundamental sobre Lima Barreto, em 1951, colocou à disposição a outra parte. Temos agora uma oportunidade para novamente juntarmos as peças do quebra-cabeça.

O mesmo tipo de hiato ocorre quando olhamos mais para um autor, ou para o outro. A organizadora do livro, por exemplo, define a produção de Lobato como constante e regular, e a de Lima, nem tanto. Hoje sabemos, porém, que o criador de Isaías Caminha entregava crônicas e contos com imensa consistência, às vezes dois textos por dia, e que só não publicou mais pois não tinha dinheiro para custear sua obra. Era arrimo de família e lutava com as contas do pai doente e aposentado desde 1903. 

Também é possível afirmar que Lima era, sim, “chefe de fila”. Criou a sua revista, a Floreal; fazia parte da confraria Esplendor dos Amanuenses e de um modernismo carioca que só não foi mais reconhecido por conta da régua e compasso criados pelo modernismo paulistano, que definiu o escritor carioca, e tantos outros que não faziam parte desse grupo restrito, de “pré-modernistas”. Pré acabou virando categoria de acusação, pois representa uma espécie de não lugar: não foi, mas também não é.

Até o momento, não há como apostar que esses dois colegas de correspondência tenham, de fato, se visto

Há ainda outros pequenos deslizes na introdução do livro. Lima jamais rompeu definitivamente com a A.B.C.. Interrompeu a sua colaboração por poucos números, pois considerou racista um artigo da revista, e esse era “desaforo” que jamais “levava para casa”. Mas logo voltou a colaborar com o periódico, que converteu-se, aliás, numa espécie de porto seguro.

A edição inclui uma troca de missivas entre o editor paulista e o escritor Godofredo Rangel. A organizadora, porém, refere-se exclusivamente às cartas trocadas com Lima.  

Esses são, porém, detalhes. O grande mérito do trabalho de Lamego é trazer de volta um Lobato cheio de iniciativas e com um lugar seguro no ambiente intelectual de sua época. Lugar que, mais recentemente, lhe tem sido usurpado. Se o editor foi um crítico do modernismo paulistano e manteve certo namoro com algumas vertentes do determinismo racial — teoria (diga-se de passagem) considerada científica em sua época —, ele era também um grande intérprete do país e, mais, um incentivador de talentos, como fez com o autor de Gonzaga de Sá

Lidas as cartas e analisadas as colunas que Lima escreveu no mesmo momento, o criador de Urupês definitivamente sai bem dessa história!

Por essas e por outras é que vale checar a correspondência privada desses dois personagens fundamentais da Primeira República. No novo livro, o leitor encontrará não só uma edição caprichada, como o estilo impagável dos escritores. Poderá constatar, ainda, como os “opostos (por vezes) se atraem”. 

A despeito de conhecer a polêmica que envolvia Lobato, Lima não rompeu com ele nem abriu mão da amizade. Até mesmo quando, diante do fracasso de vendas de Gonzaga de Sá, o paulista negou-se a publicar Clara dos Anjos — esse sim um romance da vida toda, não apenas de 1922 —, o carioca não se fez de rogado e, educado como costumava ser, agradeceu a pronta resposta.

Mas há um segredo que ainda não foi possível desvendar. Apesar de Lamego dar a entender que os dois escritores podem ter se encontrado, não se tem prova, até agora, de que efetivamente tenham estado juntos; fosse na capital do país, fosse em São Paulo. Lobato enviou uma carta a Lima indagando o seu endereço, e ele, fiel a seu estilo, respondeu que não era “quilombola”. Afirmou mais: que estaria “escrito no livro do destino” que os dois não se “veriam jamais”. E termina empurrando a adiada reunião para um futuro incerto: um “belo dia, quando menos nos esperamos: — Ó Lima! — Ó Lobato! E ferraremos esse abraço encruado”. 

Há quem diga que Lobato chegou a ver o colega de longe, num frege do Rio, mas que ele se encontrava tão embriagado que o paulista achou por bem nem ao menos cumprimentá-lo. Lima, por sua vez, a caminho de Mirassol (SP), onde se encontraria com o colega Ranulfo Prata para tentar curar-se da bebida, passou por São Paulo com sua “mala calhambeque” e contou aos amigos que teria dado um pulo no escritório do editor. Mas não ofereceu detalhes, e nem foi secundado por seu confrade.

Enfim, até o momento, não há como apostar que esses dois colegas de correspondência tenham, de fato, se visto. O que sim fica comprovado é como, dois autores, hoje considerados inimigos de ideias, acharam boas brechas para, mesmo discordando, debaterem assuntos angulares que ainda têm lugar cativo em nossa agenda. 

A fonte epistolar é sempre assim: entrega parte do mistério, mas não suspende totalmente o véu da dúvida. 

Nota da autora 
Na biografia que acabo de publicar, Lima Barreto: triste visionário, desenvolvo com mais vagar parte dos argumentos aqui apresentados. 

Quem escreveu esse texto

Lilia Moritz Schwarcz

É professora titular da USP e autora de O espetáculo das raças (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #3 jul.2017 em junho de 2018.