Literatura,
O jogo continua
As histórias de Sherlock Holmes deixaram lacunas que sociedades de leitores se encarregam de preencher
28nov2018 | Edição #18 nov.2018O escocês Arthur Conan Doyle tinha a ambição de se tornar autor de romances históricos. Para sua frustração, o sucesso e o dinheiro vieram por meio de algo que ele considerava criação menor, mero passatempo: as aventuras do detetive Sherlock Holmes, inspiradas nos delírios do seu pai, alcoólatra e epiléptico; nas fábulas que ouvia da mãe quando era criança; e nas habilidades interpretativas de um professor que teve na faculdade de medicina, que diagnosticava os pacientes com base na observação.
A obrigação constante de inventar novas charadas para Holmes e seu parceiro, o médico John H. Watson, desgastava Doyle. Em 1893, decidiu matar a personagem no conto “O problema final”, fazendo-o cair das cataratas de Reichenbach, na Suíça, num abraço mortal com o professor Moriarty. Dez anos depois, por pressão do público (e das contas a pagar), viu-se obrigado a ressuscitá-lo. Algo frequente na ficção, o criador se tornara refém de sua criatura.
O grande jogo
Como sabem pescadores, escritores e outros contadores de histórias, o truque mais antigo do bom mentiroso é iludir seu público de que tudo o que descreve é real, intenção que persegue a literatura realista desde Robinson Crusoé. Datas incompletas, iniciais sugestivas e pseudônimos foram usados ao longo do tempo para transmitir verossimilhança. Doyle apenas somou um toque metalinguístico: Holmes, assim como Dom Quixote, sabe que suas histórias são publicadas, e que há um público reagindo a elas. Nem sempre ele fica feliz com isso, e desdenha da própria notoriedade, mas eventualmente tira proveito dela.
O gambito literário de Doyle teve dois efeitos em seus leitores: o mais notório é que, até hoje, pessoas enviam cartas para o número 221B de Baker Street, em Londres. O apartamento dividido por Holmes e Watson na ficção é atualmente ocupado por um museu dedicado ao detetive. O outro efeito é que, se interpretadas como reais, as histórias — 56 contos e 4 romances — revelam inúmeras lacunas, algumas intencionais.
“Conhecer a personagem principal por meio de seu amigo, e um amigo jamais é de todo confiável enquanto narrador, parece uma tática ficcional muito sábia”, diz José Francisco Botelho, que traduziu O livro de Moriarty para o selo Penguin, da Companhia das Letras, digesto dos embates entre o detetive e seu arqui-inimigo. “O estilo de Doyle é perfeitamente adequado àquilo que se propõe. O gênero policial tem qualidades clássicas mais fáceis de criticar do que praticar. Não consigo imaginar O vale do medo narrado em qualquer outro estilo.”
Há diversos casos considerados “muito escandalosos” para serem descritos que Watson menciona apenas de passagem. O fato de Doyle tratar as histórias de Holmes com certa displicência nem sempre se apegando a detalhes criou discrepâncias. Afinal, a ferida de guerra de Watson é no ombro ou na perna? Sua esposa (que pode ser a primeira ou a segunda) está viva ou morta? Como disse T. S. Eliot, “talvez o maior mistério de Sherlock Holmes seja este: quando falamos dele, invariavelmente nos colocamos a imaginar sua existência”.
Ficção de fã
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Mas é claro que Holmes existiu. Suas histórias são claras: o dr. Watson narrava aventuras de uma personagem histórica e Arthur Conan Doyle era apenas seu agente literário. Ao menos essa é a visão dos sherlockianos, conforme proposta de Ronald A. Knox, padre, radialista e escritor de tramas policiais que, num ensaio satírico de 1928, sugeriu estudar a obra de Doyle aplicando o método de análise bíblica conhecido como alta crítica. Assim, o “cânone” doyliano seria tratado como relato histórico, interpretando-se os pequenos anacronismos, lacunas e contradições não como frutos da distração de um autor apressado, mas como erros de transcrição cometidos por Watson sobre fatos reais.
Isso levou à criação de diversas sociedades dedicadas a estudar Holmes. A Baker Street Irregulars, a mais antiga delas, fundada em 1937 nos Estados Unidos, admite seus membros apenas mediante convite, e teve em suas fileiras Rex Stout e Isaac Asimov. Encontrar soluções para cada lacuna, sugestionamento ou discrepância passou a ser o passatempo desses aficionados, atividade batizada de “jogar o grande jogo” — uma referência à expressão “o jogo começou”, usada com frequência por Holmes ao iniciar seus casos, e extraída do Henrique V, de Shakespeare.
Até hoje, pessoas enviam cartas para o número 221B de Baker Street, em Londres, endereço de Holmes
Indo um passo além, há os que decidem escrever as histórias que preenchem essas lacunas — algo que hoje classificamos como fanfic. Não que seja um conceito novo: quando Virgílio decidiu escrever a continuação da Ilíada, estava fazendo fanfic tanto quanto o autor da falsa continuação de Quixote, execrado por Cervantes na abertura do segundo volume. Assim como, a rigor, não há diferença entre o entusiasta de J. K. Rowling que escreve aventuras apócrifas para Harry Potter e o leitor de Shakespeare que, como o dramaturgo Tom Stoppard, escreve uma peça como Rosencratz e Guilderstern estão mortos para preencher uma lacuna de Hamlet.
Por definição, nenhuma fanfic finge ser obra literária autônoma. Não precisa que se aponte seus adereços e fontes, porque ela não os esconde, pelo contrário — orgulha-se de ser uma obra derivativa. Uma fanfic pode até ser independente da fonte original, mas não é esse seu objetivo.
Se fôssemos Sherlock
Como a literatura de língua inglesa em geral, a influência de Doyle demorou para chegar até nós, mas foi significativa: está indiretamente ligada ao início da ficção policial no Brasil. O pesquisador Bruno Anselmi Matangrano, especialista em literatura fantástica, aponta que ela se desvelou somente dois anos após a morte de Doyle, em 1932, com a publicação de Se eu fosse Sherlock Holmes, do pernambucano Medeiros de Albuquerque, precursor do gênero policial no país. Embora não seja uma fanfic, a história é contada por um narrador que, após ler compulsivamente os escritos do escocês, evoca sua principal criatura para solucionar crimes.
“O estilo irônico de Medeiros de Albuquerque já antecipa nossa tendência à sátira e à comédia, elementos até então inexistentes na tradição policial inglesa e norte-americana”, afirma Matangrano. Desse caldo, o exemplo mais bem-sucedido no Brasil ainda é O Xangô de Baker Street (Companhia das Letras, 2001), de Jô Soares, que contrasta o racionalismo vitoriano de Holmes com a sociedade brasileira escravocrata do segundo império; também vale nota o goiano José J. Veiga, que em seu O relógio Belisário (Bertrand/Grupo Record, 1995) mistura a saga do detetive britânico com O homem que sabia javanês, de Lima Barreto, numa trama de realismo fantástico.
Mais recentemente, o jornalista Carlos Orsi coorganizou a coletânea Sherlock Holmes: aventuras secretas (Draco, 2011), que reúne contos tradicionalmente sherlockianos assinados por diversos autores brasileiros. “O que me atrai em Doyle é seu storytelling. Parece-me o narrador perfeito: o senso de tom, de timing.” Campineiro e conhecido na cena de literatura fantástica brasileira, Orsi já publicou no Baker Street Journal, o periódico oficial da sociedade dos Irregulars. É fascinado por Holmes desde a infância, quando ganhou a série completa em edições do Círculo do Livro. “Na verdade, escrever uma história de Sherlock era um desafio que eu havia me imposto desde que comecei a escrever: vivia prometendo a mim mesmo que um dia prestaria essa homenagem.”
A relação do escritor André Zanki Cordenonsi com o detetive também vem da infância: sua semelhança com Nicholas Rowe, que protagonizou o filme O enigma da pirâmide, rendeu-lhe o apelido de Sherlock na escola em Santa Maria (RS). Membro da The Sherlock Holmes Society of London, Cordenonsi é autor do infantojuvenil Sherlock e os aventureiros (Avec, 2017). Nesse livro, sobre a adolescência do detetive, o autor faz Sherlock encontrar figuras reais das ciências, como o inventor Nikola Tesla e a matemática Ada Lovelace.
A obra de Cordenonsi é resultado de dez anos devorando tudo o que fora publicado sobre Holmes, entre estudos, pastiches e o cânone. “A quase nulidade de pistas deixadas por Doyle sobre a juventude de Holmes a torna quase um quadro em branco, em que é possível brincar à vontade”, diz ele, que assim como muitos trouxe a fascinação pelo personagem de suas leituras formadoras na juventude. “Cheguei no Doyle depois de ler Agatha Christie. De certa forma, era o oposto de Poirot [o detetive criado pela escritora], mas os dois partiam de uma observação profunda da realidade que os cercava. Como sempre gostei de lógica matemática, adorei a forma como ele utilizava a lógica pura na solução de problemas — além da arrogância, claro. Passei a utilizar as mesmas técnicas no dia a dia com os meus amigos. Foi um fracasso.”
Sherlockianos
Assim chegamos a Otto Penzler, orgulhoso proprietário da The Mysterious Bookshop, em Nova York, uma das mais antigas livrarias dedicadas à literatura de mistério — e lar da maior coleção de memorabilia sherlockiana do mundo. É dele a organização de As novas aventuras de Sherlock Holmes, lançado aqui pela Nova Fronteira/Ediouro em dois volumes.
O rol dos que se puseram à aventura antropofágica de digerir e reproduzir Doyle não é pequeno: abrange tanto autores famosos como Stephen King e Neil Gaiman como ilustres desconhecidos. Há propostas sérias e outras paródicas, como as várias de J. M. Barrie, criador de Peter Pan e amigo de Doyle, que em uma delas confronta autor e personagem para lembrar ao colega que é Holmes quem lhe paga as contas.
Holmes transcendeu a literatura, tornando-se mito ao lado de Hércules, Rei Artur e Sherazade
Anthony Burgess, de Laranja mecânica (Aleph, 2004), contribui com uma reprodução fiel do estilo do escocês, colocando Holmes para resolver o assassinato de um pianista cometido em pleno palco. Já Kingsley Amis emula o fatalismo de O cão dos Baskervilles num conto que inclui gêmeos, mordomos suspeitos e ameaças de morte.
No conjunto, é um deleite para aqueles que, tendo esgotado o cânone, querem ir além dele — ou se aventurar no seu próprio exercício sherlockiano. Até hoje, poucos personagens criaram um senso de comunidade tão forte entre seus leitores e apreciadores.
Holmes transcendeu a literatura, tornando-se mito ao lado de Hércules, Rei Artur, Sherazade e Dom Quixote. Há um pouco de Doyle em cada livro policial escrito desde então. É quando a pretensão de originalidade pura e simples se desfaz que, como a solução de um mistério, percebe-se que a literatura de ficção é uma linha contínua de paródias, pastiches, homenagens e referências. Tem sido assim desde que um senador romano se pôs a fazer sua fanfic de Homero, a Eneida.
Matéria publicada na edição impressa #18 nov.2018 em novembro de 2018.
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