Literatura,
O canto de cisne de Tchékhov
Com suas narrativas sutis e inconclusivas, o escritor russo deu uma contribuição decisiva para a literatura moderna
26set2023 | Edição #74Em março de 1897, Anton Tchékhov foi jantar em um restaurante de Moscou com Aleksei Suvórin, seu amigo e editor. Antes de a comida chegar, Tchékhov começou a sangrar pela boca. Ele sofria de tuberculose há muitos anos, mas nunca havia tido uma hemorragia tão violenta. Desde então, sua saúde se deterioraria progressivamente até a morte do escritor, em 1904, aos 44 anos.
De origem humilde (os avós eram servos e os pais vieram do interior para Moscou fugindo de credores), Tchékhov começou a escrever muito jovem, para sustentar a si mesmo e a família enquanto estudava medicina. No início, publicava em jornais e revistas pequenos textos cômicos que o tornaram muito conhecido e querido pelos leitores russos; pouco a pouco, foi aprimorando suas narrativas curtas até se tornar um dos mais respeitados e influentes escritores da Rússia.
Em comparação com outros titãs da literatura russa, seu perfil era bem sóbrio e discreto, o que parece se refletir no caráter ambivalente de seus contos
Sem abandonar a profissão de médico, Tchékhov, ao longo da vida, escreveu mais de quinhentos contos, mas, em seus últimos anos, diminuiu sensivelmente o ritmo da produção literária; se no começo da carreira escrevia várias histórias por mês, na maturidade o intervalo entre cada texto foi crescendo até chegar a três ou quatro por ano, ou menos. Essa mudança pode ser atribuída a várias razões: a saúde piorava e tornava a escrita mais incômoda, enquanto boa parte do seu tempo era usado na revisão e edição de contos anteriores, para cumprir um contrato de publicação de suas obras completas. Além disso, esse foi o período em que Tchékhov se dedicou com mais afinco ao teatro, escrevendo algumas de suas peças mais conhecidas, como Três irmãs e O jardim das cerejeiras.
Há, porém, uma razão adicional para essa produtividade decrescente: a exigência artística cada vez maior. Se os contos finais de Tchékhov não primam pela quantidade, em compensação representam o apogeu de sua produção literária, o resultado mais bem-acabado de toda uma vida dedicada a reinventar a narrativa curta. Essas histórias estão agora reunidas em Últimos contos, que traz quatorze textos publicados entre 1898 e 1903, oito meses antes da morte de Tchékhov, traduzidos com a habitual maestria por Rubens Figueiredo.
Em “Sobre o amor”, um dos contos do livro, a certa altura um dos personagens diz: “Nós, russos, pessoas respeitáveis, sentimos forte paixão por perguntas sem resposta”. A frase parece uma referência indireta do autor às suas próprias histórias, que encantavam mas também desconcertavam os leitores com sua estrutura “sem trama nem final” (expressão do próprio Tchékhov), em que nenhum conflito era “resolvido”. Seu território é o da ambiguidade, da indefinição, da sutileza, do anticlímax, e isso ajuda a entender por que, mais de cem anos depois de publicadas, essas histórias continuam nos encantando e desconcertando.
Atribulações mundanas
Tchékhov não foi desterrado pelo czar nem morreu em um duelo, como Púchkin; não lutou na Guerra da Crimeia nem foi excomungado pela Igreja Ortodoxa, como Tolstói; tampouco se envolveu em conspirações políticas, foi preso e mandado para a Sibéria, como Dostoiévski. As atribulações de sua vida foram mais mundanas: problemas familiares, financeiros e de saúde. Em comparação com outros titãs da literatura russa, seu perfil era bem sóbrio e discreto, o que, aliás, parece se refletir no caráter ambivalente e despretensioso dos contos e peças de teatro do autor. Essas mesmas características estimulam leituras muito diversas tanto de sua obra como de suas intenções criativas.
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Avesso a grandiloquência, puxa-saquismo, autoindulgência e tantos outros vícios do mundo literário, Tchékhov sempre defendeu com unhas e dentes sua liberdade artística e independência de pensamento. Com base nesses aspectos de sua vida, registrados em extensa correspondência e documentos biográficos, não é difícil pintá-lo quase como um “baluarte do individualismo liberal”, como aponta Rubens Figueiredo em seu indispensável prefácio. O tradutor contrapõe a essa imagem outro Tchékhov: o escritor proletarizado cuja origem e condição social favorecem não só uma capacidade privilegiada de identificar e expressar as contradições humanas, como também uma atenção aguda à dimensão de classe e às relações de poder envolvidas nessas contradições.
Suas histórias são ‘incompletas’ porque na vida, como na ficção, estabelecer onde vai ser colocado o ponto final tem sempre algo de arbitrário
É um argumento persuasivo. Tchékhov estava bem longe do engajamento político de um escritor como Górki (que era seu contemporâneo e amigo) e manifestou muitas vezes ceticismo sobre a capacidade da literatura de resolver as mazelas do mundo. Em uma carta ao editor Suvórin, ele diz que a obrigação do artista não é a solução do problema, e sim sua “colocação correta”, sua formulação da maneira mais clara e precisa possível. No entanto, quando prestamos atenção aos problemas que Tchékhov escolhe apresentar ao leitor nessas histórias, são recorrentes temas como a opressão de camponeses e operários (por exemplo, nos contos “Um caso médico” e “Coisas de trabalho”), a hipocrisia e o conformismo da pequena burguesia (“A groselheira” e “O homem no estojo”) e a ociosidade vazia das classes abastadas (“Em casa de amigos” e “A noiva”). Nenhuma dessas questões é formulada de modo simplista e muito menos panfletário, é claro, mas estão em primeiro plano, e é difícil não reconhecer nelas um forte vínculo com a principal dimensão existencial que permeia toda a obra de Tchékhov: o descompasso entre intenção e realidade, entre o que se diz e o que se faz, entre o que se quer ser e o que se consegue ser.
Em outra de suas cartas a Suvórin, diz Tchékhov: “Eu vi tudo; portanto, a questão não é o que vi, mas como vi”. Ele se referia à sua célebre viagem à remota ilha-presídio de Sacalina, no extremo oriente do Império Russo, onde esteve por três meses em 1890; mas poderia estar falando de sua trajetória como médico, que lhe deu acesso à intimidade e às agruras de todas as camadas sociais da Rússia. Esse conhecimento profundo e direto do sofrimento humano é um dos grandes trunfos de Tchékhov — esse que, no entanto, provavelmente não seria suficiente para torná-lo um escritor de primeira grandeza se não fosse o como.
Antes de Tchékhov, contar uma história era algo que tinha a ver sobretudo com mudança; os protagonistas lidavam com conflitos que em algum momento chegavam a uma resolução, que, por sua vez, instaurava um novo estado de coisas. A maior parte da ficção escrita até hoje segue esses princípios, mas Tchékhov trouxe uma contribuição nova e decisiva para a narrativa moderna ao abrir caminho para histórias mais sutis e menos lineares: as mudanças aparentes são muitas vezes falsas ou precárias, tentativas frustradas de encobrir a incapacidade de mudar, e as tensões raramente são desatadas de forma conclusiva. Essa “incompletude” das histórias mimetiza a da própria vida; as histórias são “incompletas” porque na vida, como na ficção, estabelecer onde vai ser colocado o ponto final tem sempre algo de arbitrário.
Sem julgamentos
“A dama do cachorrinho”, um dos contos mais conhecidos de Tchékhov, também incluído no livro, ilustra esses pontos com perfeição. Nele, acompanhamos um homem e uma mulher, ambos em casamentos infelizes, que têm um caso durante o verão e depois retornam a sua vida de sempre, para aos poucos descobrir, perplexos, que estão apaixonados um pelo outro e não sabem o que fazer com isso. A história termina assim: “Para ambos estava claro que o fim ainda estava longe, muito longe, e que o mais complicado e difícil estava apenas começando”. Comenta Vladimir Nabokov: “Todas as regras tradicionais de contar histórias foram violadas nesse maravilhoso conto de cerca de vinte páginas. Não há nenhum problema, nenhum clímax usual, nenhuma moral no fim. E se trata de um dos maiores contos escritos até hoje”.
Tolstói não gostava de “A dama do cachorrinho”; talvez porque, sem um final conclusivo, tampouco há um julgamento conclusivo sobre a moralidade dos protagonistas, como seria mais do agrado do autor de Anna Kariênina. Contudo, o mesmo Tolstói amava o conto “A queridinha”, em que a mansa e obediente Ólienka serve devotadamente a três maridos sucessivos, amoldando-se a cada um deles a ponto de se apagar quase completamente; talvez porque Tolstói visse nessa história um elogio à generosidade e abnegação femininas onde outros poderiam ver uma crítica velada à subserviência e à opressão da mulher na sociedade russa. Novamente, é a ausência de um julgamento conclusivo o que permite leituras tão diferentes, e também o que explica boa parte do fascínio dos contos de Tchékhov.
Últimos contos traz essas e várias outras joias, como “No barranco”, que tanto Tólstoi como Górki consideravam uma das melhores obras de Tchékhov. Esse conto longo, quase uma novela, situa-se em um sórdido povoado do interior “onde o sacristão comeu todo o caviar num funeral”. Aqui, assistimos à ganância levando uma família à degradação moral e a cenas de crueldade inimaginável, com os fortes triunfando sobre os fracos sem qualquer sinal de redenção à vista e sem a pretensão de explicar por que as coisas são assim. Diz um dos personagens, um velho camponês: “Não deram quatro asas para os pássaros, mas duas, porque com duas já é possível voar; assim, também, não deram ao ser humano a capacidade de saber tudo, só metade ou um quarto. Ele sabe tanto quanto precisa para tocar sua vida”.
Depois de “No barranco”, Tchékhov publicaria apenas mais duas histórias. Últimos contos é o sublime canto de cisne de um dos maiores artistas que já existiram, com sua sensibilidade aguçada pela presença da morte — e da consequente urgência de lembrar, como diz o narrador da história, que “a vida só é dada uma vez”.
Matéria publicada na edição impressa #74 em setembro de 2023.
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