Infantojuvenil,
Muros que fazem pensar
Livros exploram com inventividade as possibilidades gráficas, literárias e até políticas das dobras das páginas
01out2019 | Edição #27 out.2019Quem já leu um livro com crianças inteligentes e curiosas sabe que elas dominam perfeitamente duas regras básicas da crítica literária: uma boa história é, antes de tudo, a que consegue capturar a atenção do leitor; e de boas intenções o inferno está cheio. Escrever boa ficção quando o objetivo imediato é provocar um efeito político já é difícil na literatura para adultos, tanto mais na infantil. Isso não significa, é claro, que obras de ficção para crianças não devam lidar com temas de relevância política direta e imediata; mas é preciso muito engenho para conseguir fazê-lo e despertar interesse sem resvalar para o didatismo, a obviedade ou a condescendência. Nesse sentido, dois livros recentes são exemplares.
O muro no meio do livro é o primeiro livro de Jon Agee publicado no Brasil. Autor e ilustrador de mais de trinta títulos, ele disse certa vez que a maior dor de cabeça para quem ilustra obras infantis é a dobra entre as páginas, “onde a magnífica página dupla que você criou acaba engolida no meio”. Partindo dessa limitação, Agee criou uma solução criativa em torno de um muro que está justamente ali: na dobra. “Tem um muro no meio do livro”, diz uma criança vestida com uma armadura. “E isso é bom. O muro protege este lado do livro… do outro lado do livro.” Enquanto está ocupada descrevendo as virtudes do muro contra os perigos que imagina existirem do outro lado do livro, outros perigos, mais reais, surgem sem que ela se dê conta.
É difícil não ver o livro, lançado nos eua no ano passado, como resposta à mais controversa empreitada do atual presidente norte-americano: a construção de um muro entre México e eua. Não é a primeira vez que Agee envereda pela parábola: em Nothing [Nada], de 2007, uma mulher rica chega a uma loja, pergunta o que tem para vender, o vendedor diz: “nada”, e ela compra “nada” por trezentos dólares, provocando uma inusitada bolha especulativa (que, premonitoriamente, lembra a bolha que causou a crise de 2008). Agee sabe criar narrativas que atiçam a curiosidade e são complexas o bastante para não caírem na tentação de apresentar “mensagens” explícitas (e, portanto, chatas).
Cheirinho de subversão
O uso inteligente da dobra aparece também em Daqui ninguém passa!, de Isabel Minhós Martins, ilustrado por Bernardo P. Carvalho, publicado em 2014 em Portugal e em 2016 no Brasil. E, assim como no livro de Agee, a narrativa também tem tintas políticas: um general decide manter a página da direita em branco, e portanto nenhum personagem da página esquerda pode passar da dobra. Para garantir a ordem, há um guarda de sentinela. À medida que vão chegando mais personagens, eles começam a reclamar e a questionar, a tensão vai aumentando e há um cheirinho de subversão no ar…
É preciso engenho para lidar com temas políticos sem resvalar para o didatismo, a obviedade ou a condescendência
Partindo de premissas muito semelhantes, os dois livros chegam a resultados bem diferentes. O muro no meio do livro tem uma simplicidade cativante, e é admirável como Agee consegue manobrar o suspense de forma eficiente e original com poucos elementos e frases descomplicadas. Mas, embora saiba que é injusto cobrar do autor o que ele não se propôs a dar, confesso que senti falta das situações esdrúxulas (e engraçadíssimas) presentes em livros como o já mencionado Nothing, ou Ellsworth (1983), em que um cachorro que é professor de economia é mandado embora da universidade por dar vazão a seus instintos caninos.
Em Daqui ninguém passa!, a situação esdrúxula que gera humor é a proibição arbitrária do General, que provoca a revolta dos personagens (e dos leitores). A situação é explorada ao máximo pelo projeto gráfico, que mantém o alto padrão de inteligência e inventividade da Planeta Tangerina (cujos livros são republicados no Brasil pela Sesi-sp), magnífica e premiada editora portuguesa. As ilustrações em canetas hidrográficas coloridas, iguais às que as crianças usam, provocam identificação imediata e são deliciosas.
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Ambos os livros receberam numerosas distinções: O muro no meio do livro foi recomendado pela Anistia Internacional, e Daqui ninguém passa! ganhou o Prêmio para a Paz Gustav Heinemann, concedido a “livros que encorajem os mais novos a lutar pela coragem moral, a tolerância e os direitos humanos”. São reconhecimentos importantes e merecidos, mas não custa lembrar que a força das duas obras não reside só em suas ideias — por mais necessárias que sejam nos tempos atuais —, mas também na capacidade dos autores de dar forma a histórias bem contadas que são muito mais do que simples veículos para ideias.
Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social
Matéria publicada na edição impressa #27 out.2019 em setembro de 2019.
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