Literatura,
O Acre é logo ali
Romance de Lucrecia Zappi revela a solidão entranhada nos nossos relacionamentos e o estranhamento que emerge da intimidade
13nov2018 | Edição #6 out.2017Onde fica o Acre? Para um casal que mora no centro da cidade de São Paulo, provavelmente mais na imaginação do que na realidade. Ou numa nota de jornal sobre rios, chuvas e a destruição da Amazônia. Ou numa aula antiga de história, que tratava da exploração do látex. O Acre, para eles, é o distante, a fronteira; confina com o exótico, com o misterioso. E a vida desse casal poderia continuar indefinidamente assim se, de repente, o Acre não irrompesse nas suas vidas e a estranheza não assumisse feições familiares, não aparecesse sob a forma de um fantasma do passado, desconfortável, que parecia esquecido.
O casal em questão é formado por Marcela e Oscar. Enquanto o Acre não bate à sua porta, eles moram num prédio pequeno da Vila Buarque, suavemente charmoso, claramente decadente — tal como o centro da cidade. Passam o dia entre o trabalho, as brigas de condomínio e os discretos impasses domésticos: o efeito do sol no sinteco, a insuficiência das cortinas, o racionamento de água. Os rituais íntimos incluem moletons, televisão e jantares a dois; a vida pública envolve uma loja de lustres decaída, um restaurante sem graça, conversas com o porteiro e idiossincrasias e histerias mais ou menos controladas dos vizinhos — com quem, mesmo a contragosto, têm que compartilhar parte do cotidiano.
A vida prossegue recheada de horas mortas, de prazer e sexo rotineiros. De vez em quando, algum ruído externo sobe pelo elevador do prédio ou entra pelas janelas abertas: um roubo na suja praça defronte, uma briga de travestis, a ação dos traficantes. Mas no mundo privado de Marcela e Oscar, poderia até passar despercebido que a cidade — a que fica além da porta do prédio — declina irreversivelmente, consome-se para se consumar, degrada-se e degrada as relações: eles fingem não saber que o público e o privado não se isolam; contaminam-se, o que gera medos, receios e reações às vezes brutais — tudo sob o véu da paz aparente.
Não são apenas as ruas paulistanas, com sua brutalidade seca, que cedo ou tarde vão interferir na intimidade do casal: também o Acre vai perturbá-los, transtorná-los. O Acre lhes chega pelas mãos de Nelson, filho da vizinha. Os três se conheceram mais de vinte anos antes, na juventude, quando Oscar mudou-se para Santos e lá conheceu Marcela e Nelson.
É do Acre que Nelson vem, cercado de mistérios: ninguém sabe direito o que fazia, como viveu nesse meio-tempo, o que pretende em São Paulo, em que confusão ou crime se meteu.
A oscilação ininterrupta entre as temporalidades é a maior das várias qualidades do romance de Lucrecia Zappi
A reaparição do antigo amigo — e ex-namorado de Marcela — aciona um carrossel de lembranças: uma briga na rua, um passeio na praia, uma orelha decepada, meia dúzia de conversas e trocas de olhares, uma morte. Oscar, o narrador, passa a intercalar o relato do presente com a reconstrução do passado, e a informar o leitor do significado de Nelson para ele e para Marcela. E Oscar se dá conta, atormentado, de que o passado, afinal, não passou, nunca passa.
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Talvez esteja justamente nessa oscilação ininterrupta entre as temporalidades a maior das várias qualidades desse segundo romance de Lucrecia Zappi. A autora constrói uma moldura dramática no presente e nela insere a tragédia do passado; traz o longínquo para perto, combina-os e desenha criteriosamente personagens que aludem àquelas pessoas com quem cruzamos na rua e de cuja vida fazemos questão de não saber, personagens de súbito capturadas pelas armadilhas da memória, pelas dobras do tempo. O leitor é forçado a observar o mundo pela ótica restrita e limitada de Oscar.
Incomodado com a surpresa tardia e desagradável de notar as fendas na relação com Marcela, ele também se desconsola diante da cidade perdida e arruinada — cujo cimento esconde rios — e da vida que sem querer se esvaiu, do mundo que se perdeu. Já que não pode parar o tempo, Oscar tenta proteger-se da erupção do presente e da estranheza na vida conjugal: vaga pela cidade para compor itinerários pessoais no tecido urbano esgarçado, idealiza um tempo que certamente foi ruim, distorce passado e presente.
É Marcela, porém, quem conhece os segredos do presente e do passado, e ela cala. Personagem complexa e enigmática, aparenta relativo alheamento em face da tensão que envolve o marido e o ex-namorado. Circula impávida por um mundo em ruínas, em que a comunicação se tornou impossível e a violência prevaleceu. Mas seu silêncio — que contrasta com o jorro de ideias e pavores de Oscar — é muito mais eloquente, pois expõe ao leitor quão ambíguas podem ser as relações, quantas vezes enfrentamos os mesmos dilemas e angústias.
Marcela, Nelson e Oscar passam mais tempo no palco e protagonizam as cenas principais, mas não são os únicos que, com a passagem dos dias, se sentem asfixiar e se transformam: a vizinha idosa, a professora mal-humorada, o síndico, o porteiro, o taxista, a travesti, o misterioso boliviano, a família abandonada de Nelson, todos se transformam no decorrer da trama, todos sofrem o impacto da vida lá fora, tragados pela vertigem da história, pela aceleração dos tempos, ninguém cabe no mundo relativamente mesquinho e falsamente tranquilo em que imaginavam viver.
Acre, o livro, é um jogo de espelhos e contrastes: recorre ao distante — no espaço e no tempo, na realidade e na imaginação — para falar do próximo; investiga as formas de sociabilidade para tratar da solidão; indaga a intimidade para revelar o estranhamento; acende as luzes para mostrar as sombras; desvela a porosidade da vida real sem mistificação.
Acre nos ajuda a lembrar do papel da literatura e, de forma geral, da arte: acentuar o desconforto, fazer o leitor se remexer na cadeira, romper seu equilíbrio precário, representar a crueza do mundo.
Matéria publicada na edição impressa #6 out.2017 em junho de 2018.
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