
Literatura,
Mulher no porão
Borboletas são passatempo de psicopata marcante da literatura do século 20
28nov2018 | Edição #18 nov.2018Miranda Grey não tinha boas relações com seus pais. Ela morava em Londres com a tia e estudava desenho. Frederick Clegg perdera pais e tio, vivia com a tia e a prima e não tinha nenhum interesse pelo trabalho burocrático que fazia nem pelas pessoas que o cercavam. Sobretudo, Frederick colecionava borboletas.
Clegg ficou obcecado por Miranda, vizinha de seu escritório, cuja rotina e horários ele acompanhava, vigilante, pela janela. Ajudado pelo acaso — um prêmio na loteria e uma longa viagem das parentes com quem dividia o teto —, comprou uma casa e preparou com cuidado o porão onde, depois de um ágil sequestro, trancou Miranda.
Aí se inicia o enredo de O colecionador, primeiro romance do britânico John Fowles, publicado em 1963 — muito antes de as histórias de psicopatas infestarem cinemas e livrarias. A narrativa é acelerada, sustenta a atmosfera de enigma e tensão, combina-a com digressões sobre a arte e as relações humanas e aos poucos arquiteta um desfecho agônico.
O livro fez sucesso e não demorou para que fosse adaptado para telas e palcos. Aqui no Brasil ganhou mais de uma edição e, pelo menos até a década de 1970, era presença garantida nas prateleiras de casas e livrarias. Quase esquecido desde então, agora reaparece num projeto gráfico bonito e bem cuidado, com apresentação de Stephen King e boa tradução de Antônio Tibau — que também assina o posfácio e organiza um breve conjunto de referências para ajudar o leitor a decifrar as obras artísticas citadas na trama.
Superficialidades diferentes
Na primeira parte do livro, a história é contada por Clegg; na segunda, Miranda é quem narra, ao registrar o cotidiano num diário. Miranda soa profunda, divaga, reflete, estuda, desenha, relembra a vida antes do cárcere, as divergências familiares e a relação com G.P., artista plástico mais velho e protótipo do intelectual pedante. Clegg é literal nas descrições, traduzindo no texto sua feição plana, a incapacidade de análise, a ausência de passado ou futuro. A rigor, quase não pensa; é guiado por uma razão inconsciente, uma vontade oculta que ele não impede nem limita.
Os dois são diferentes e também parecidos: espelham-se — porque, na inversão, espelhos mostram semelhanças. Clegg é simplório na aparência, mas sua frieza e alienação indicam a profundidade do abismo de sua (in)consciência, do universo privado a que se recolhe. Miranda cita livros, músicas e pintores, pretende-se sofisticada, mas deixa entrever, na reiteração de meia dúzia de clichês, deslumbramento e superficialidade.
Mais Lidas
A verdade é que eles habitam mundos e tempos distintos. Na Inglaterra do pós-Segunda Guerra, a classe média baixa de onde vem Clegg se mantém apegada a padrões estéticos e comportamentais antigos; a classe média alta de Miranda deseja incorporar novos hábitos e valores, o que a leva a ridicularizar “o horrível mundinho de periferia” de seu algoz. Daí resulta parte da incompreensão recíproca. Ela não sabe o que ele quer. Pergunta-se “O que ele é?” e o confronta: “O que me assusta em você é algo que você não sabe que existe dentro de si”. Ele, que dificilmente compreende o que ela diz, constata sozinho: “O que ela nunca entendeu foi que aquilo me bastava. Tê-la comigo era o suficiente. Nada precisava ser feito. Só queria que fosse minha, e a salvo, finalmente”.
Clegg é raso na aparência, porém sua frieza indica o abismo de sua (in) consciência; Miranda cita livros e pintores, mas é deslumbrada e superficial
Passam os dias, e Clegg e Miranda desenvolvem rituais estranhos e paralelos. Ele a idolatra e olha para si mesmo com a autoindulgência assustadora que só os inconscientes alcançam (“seu amor é o amor-próprio”, acusa Miranda). Ela o detesta, quer fugir, mas também se vê atraída e procura entender a estranha personalidade por trás dos “olhos de peixe” dele, “olhos vidrados”, “cinzentos com um toque de luz cinza esmaecido” — no prefácio, King fala em “síndrome de Estocolmo”, expressão que só surgiu dez anos após a publicação da obra. Nos momentos em que se dá conta do arrefecimento de seu ódio, Miranda pensa-se parecida com ele (alguém estranho e familiar) e sente repulsa de si mesma.
De uma perspectiva ou de outra, como registra a prisioneira, seus destinos estão interligados, “como náufragos numa ilha — num bote — juntos. De todas as formas, sem querer estar juntos. Mas estando juntos”. E ela anota no diário: “Ninguém acreditaria nessa situação. Ele me mantém completamente refém. Mas em todo o resto, quem manda sou eu”. Eles conversam — até porque o silêncio do porão a aflige — e os diálogos oscilam entre o pavor e a ironia, o afeto e a ira, o desprezo e a angústia, a sátira e o fascínio; resvalam a amizade e avançam na direção da tragédia.
Shakespeare
A ambiguidade é reforçada pelo apelido que Miranda dá a Clegg. A ideia surge numa das primeiras conversas entre eles. Ela lhe pergunta o prenome e ele mente, dizendo se chamar Ferdinand. O iletrado Clegg só pretendia se mascarar; a leitora Miranda notou logo a coincidência com Miranda e Ferdinand, casal jovem e apaixonado de A tempestade, de Shakespeare. Mas esse Ferdinand, para ela, é desprezível; então prefere associá-lo a outro personagem da peça e fulmina: “Deveriam te chamar de Caliban”. Caliban: selvagem, disforme, escravo, irracional, monstruoso, sem forma humana e atraído por uma Miranda, como Clegg. Demencial, como Clegg — que Miranda descreve como “um espaço vazio disfarçado de ser humano”, com “cheiro de sabonete e nada mais”.
Confinada no porão e num paradoxo, a vítima de Caliban sente principalmente falta da luz. A metáfora é plural: luz para desvelar a arte e revelar a artista em que ela sonha se transformar; luz para fazer nascer a mulher, madura e forte, que quer ser. Luz para contrastar a irracionalidade do psicopata que a ama e destrói. E também para iluminar o mundo insano de um colecionador de borboletas e mulheres.
Matéria publicada na edição impressa #18 nov.2018 em novembro de 2018.
Porque você leu Literatura
Uma ode ao desejo
Em romance de estreia, Selby Wynn Schwartz transforma precursoras do feminismo em herdeiras da poeta grega Safo
JULHO, 2025