Literatura,

Memória de ouvido

Qualquer história se torna bonita no podcast de Nate DiMeo, cujas narrativas sonoras ganham a forma de livro

09nov2018 | Edição #4 ago.2017

Para aliviar o tédio e evitar dormir numa longa viagem aérea, o professor de linguística e tradutor curitibano Caetano W. Galindo decidiu finalmente ouvir um podcast que, havia tempo, atiçava sua curiosidade. E assim foi que ele entrou pela primeira vez em The memory palace, de onde só saiu oito horas depois, “pasmado, encantado e absolutamente derrubado”. Concebido há nove anos pelo jornalista Nate DiMeo, o podcast (hospedado no site radiotopia.fm) impressionou de tal modo Galindo que ele transcreveu e traduziu, por conta própria, alguns episódios e os reuniu num livro que, por ora, só existe em português. Nem em sua página na internet DiMeo disponibiliza a transcrição.

Sem o mesmo trânsito de Galindo por podcasts, ao ser convidado para resenhar O palácio da memória, do cume da minha ignorância perguntei: “É reedição daquele livro sobre o palácio da memória de Matteo Ricci?”. Não era. Apenas homônimos.

Ricci foi um missionário jesuíta cuja memória encantou a China entre os séculos 16 e 17. Suas proezas mnemônicas resultaram num ensaio histórico de Jonathan D. Spence, traduzido há trinta anos, e a expressão memory palace já batizara uma infinidade de cursos e softwares dedicados ao aprimoramento da memória antes de DiMeo homenageá-la com seus encantadores canapés históricos, mensalmente publicados on-line.

São recordações encadeadas sobre pessoas, em lugares e momentos dos EUA nos últimos três séculos, passado que DiMeo traz de volta e enriquece de detalhes surpreendentes e saborosos factoides, narrados com a mestria de um contador de histórias ao redor de uma fogueira. Um show de trivia, delicadeza, imaginação e bom humor, valorizado pela voz natural e acolhedora do apresentador.

Com duração média de cinco minutos, são como clips audiofônicos e minimalistas, sem intérpretes, sem diálogos: narração pura, dramatizada por uma trilha sonora que, de tão farta e expressiva, com temas de filmes compostos por John Williams, John Dankworth (Modesty Blaise!), mais Debussy, musak ambiente e um timaço de jazzistas e roqueiros, ganhou vida própria numa playlist no serviço de música digital Spotify.

Bem, isso é o que se ouve on-line, a experiência aural a que DiMeo circunscreveu o projeto, revertido por Galindo à sua forma original, ou seja, levado de volta ao papel. Pois antes de virarem podcasts, as narrativas desse palácio virtual da memória foram textos literários, roteiros de uma prosa refinada, escritíssima, pensada, por vezes quase metrificada, para usar a adjetivação de Galindo em seu breve e entusiástico posfácio.

DiMeo enriquece as recordações com detalhes surpreendentes, narrados com a mestria de um contador de histórias ao redor de uma fogueira

Das cinquenta histórias, cinco figuram entre as dez favoritas do próprio DiMeo: “Distância”(sobre o pintor Samuel Finley Breese Morse, mais conhecido como o inventor do código de mensagens que leva seu nome); “Essas palavras para sempre” (sobre o italiano Guglielmo Marconi, inventor do rádio e salvador de 760 náufragos do Titanic); “Corpos outros” (o oposto de Meu coração canta, a edulcorada cinebiografia da cantora Jane Froman estrelada por Susan Hayward, em 1952); “Zulu Charlie Romeu” (ou a paixão à primeira vista de uma jovem professora de piano italiana por um príncipe africano exposto num mafuá nova-iorquino); “A roda” (uma das várias peripécias da série, protagonizadas por um escravo nos tempos da Guerra Civil americana).

A preferida de DiMeo, e creio que da maioria, é “Dreamland”: comovente elegia ao parque de diversões no Brooklyn que, depois de deleitar hordas de norte-americanos e turistas por sete anos, foi destruído pelo fogo em 1911. Fecho com a maioria. 

Dos que constam da antologia, meu coração balança entre “Babá” (masculino: Don Hornig, brilhante cientista de 25 anos obrigado ao papel de bomb-sitter da bomba atômica que seria testada para destruir Hiroshima); “Problemas da dinâmica bidimensional de projéteis” (no caso, um projetil humano: Rosa Richter, 14 anos, vulgo Zazel, primeira adolescente a ganhar seu sustento como bala humana de canhão); e “116.842” (o número da primeira patente obtida por uma mulher, Margaret Knight, nos EUA, depois de inúmeras vezes preterida por algum marmanjo).

Morse, Marconi, Froman — embora estas e outras celebridades, como John James Audubon, Edgar Allan Poe, a pianista Hazel Scott, o astronauta John Glenn, tenham momentos de suas vidas sintetizados com brio por DiMeo, é bem extenso o elenco de anônimos, ou quase isso, em circulação pelo palácio, além de bichos como elefantes, lagostas, pombos e leões (com destaque para o mascote dos estúdios Metro).

Qualquer história torna-se bonita nas mãos do autor, especialmente aquelas protagonizadas por gente audaciosa, pertinaz e sem apego a convenções sociais. Incluam-se nessa última categoria os avós do autor, cujo relacionamento amoroso ele não se furtou a contar. E por que não, se o avô era dono de um clube noturno, e a futura avó, sua principal dançarina?

Quanto ao neto, ainda que me falte o seu talento narrativo, alinhavo aqui alguns dados essenciais de sua carreira. Nate DiMeo nasceu em Providence (Rhode Island) em 1974, passou mais de uma década em rádios públicas, fazendo entrevistas, editando e participando de programas como All things considered. Estimulado pelos documentários de Ken Burns sobre a cultura norte-americana, concentrou-se na ideia de um podcast sobre história. Que ainda mais personalidade adquiriu quando ele, ao desistir de capítulos com uma ou meia hora de duração, “para não entediar os ouvintes”, reinventou um gênero.

The memory palace estreou em 12 de dezembro de 2008, com uma tragédia pinçada na seção de obituários do New York Times: cinco mortes horríveis, que DiMeo embalou com uma canção de Cole Porter, “You’d be so nice to come home to”, na voz de Nina Simone. Emplacou num estalo. Em 2016, o Metropolitan o convidou para ser um de seus artistas residentes e produzir dez áudios inspirados em objetos da coleção do museu. 

Nascia o museu da memória.

Quem escreveu esse texto

Sérgio Augusto

Jornalista, reuniu seus textos sobre cinema em O colecionador de sombras (e-galáxia).

Matéria publicada na edição impressa #4 ago.2017 em junho de 2018.