Literatura,
Manifesto da meia-idade
No romance De quatro, Miranda July reflete sobre sexo, relacionamentos e erotismo a partir de uma personagem às voltas com as transformações da perimenopausa
01jan2025 • Atualizado em: 08jan2025 | Edição #89 janA primeira vez que tive uma conversa sobre menopausa, não foi bem um papo, mas um assombro. Uma amiga (dois ou três anos mais velha) descrevia o “diagnóstico” de sua ginecologista para alguns incômodos que vinha sentindo: “É a ‘menô’. Agora, você pode dar mais do que chuchu na serra!”, disse a médica, numa referência à oportunidade de transar sem a perspectiva de uma gravidez.
Desorientada e desconfiada dessa recém-adquirida superliberdade irreprodutiva, minha amiga foi a outro consultório. De um homem. O médico explicou que não era bem assim. Ela ainda podia engravidar, pois estava, na verdade, na perimenopausa.
Dessa maneira, descobri que, antes da morte (a menopausa), há um limbo transitório que não tem idade certa para começar, e dura até um ano após a última menstruação, período em que a mulher vive alterações hormonais que podem causar:
insônia
ressecamento vaginal
depressão
ansiedade
dificuldade de concentração
coração acelerado
ganho de peso
problemas de memória
redução de libido e desejo sexual
etc. etc. etc.
(como mencionei, é o fim).
Pois é justamente sobre essa fase tabu da qual nada falamos, mas pela qual todas iremos passar um dia, que trata De quatro, livro-sensação da multi-artista estadunidense Miranda July. Publicada em maio passado, a obra aclamada como “primeiro grande romance sobre a perimenopausa” apareceu no topo do ranking de melhores lançamentos de 2024 da revista The New Yorker; do jornal The New York Times; da revista Time e da rede britânica BBC, entre outras.
Em podcasts, vídeos, posts em redes sociais, mulheres de todas as idades compartilharam experiências semelhantes às vividas pela protagonista criada por July. No Brasil, desde que começou a se popularizar entre as “perimenopausers”, só se fala disso. Uma amiga pretende presentear todas as mulheres que conhece com o livro. Outra o levou à sessão de terapia. Uma terceira quer pegar todo mundo “enquanto é tempo”. Um amigo hétero achou sexy.
Revolução do estrogênio
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Tudo isso se deve a uma trama vibrante, irônica e muitíssimo bem escrita, em que July conduz ao tour de force de uma mulher de 45 anos, cujas mudanças hormonais da perimenopausa vão provocar uma revolução, passando por questionar relacionamentos, maternidade, sexo, masturbação, erotismo, corpo e amizades. Não se trata de uma mulher em crise de meia-idade, afirmou July ao The New York Times, “mas — no sentido épico e dantesco — uma mulher no meio de sua vida”.
Dessa mesma maneira sentia-se July quando escreveu De quatro, entre os 45 e 49 anos — ela completou cinquenta em 2024. “Falamos de casamento, sexo e vida doméstica como se o que sentimos não coubesse numa existência que pode nos parecer muito boa. Mas, talvez, desde o início, você esteja seguindo o ritmo de outras pessoas”, disse a escritora ao podcast Where Should We Begin?, da psicanalista Esther Perel, autora de best-sellers como Sexo no cativeiro: como manter a paixão nos relacionamentos (Objetiva, 2018).
“À medida que você entra em si mesma, começa a despertar, a crescer, tudo muda”, acredita July. “Para mim, isso aconteceu durante a perimenopausa — que é tratada como um ‘grande segredo’ —, quando compreendi que essa sensação de não se encaixar pode se tornar uma agonia que você suporta, porque é o que é, certo? E só fica reclamando”, disse a Perel.
É como se a escritora estivesse lendo os pensamentos das leitoras, incluindo os mais malucos
Em De quatro, as transformações da protagonista sem nome, uma artista radicada na Califórnia, começam quando ela ganha um dinheiro inesperado, após uma frase de sua autoria ser utilizada numa campanha. Em posse de 20 mil dólares, ela se presenteia com uma hospedagem no hotel Carlyle (diárias a partir de setecentos dólares), em Nova York, onde pretende passar uma semana curtindo adoidada sozinha. Isso significa deixar em casa o marido, Harris, produtor musical uma década mais velho, e Sam, sua amada criança não binária, a quem ela é apegada.
Para tornar a viagem mais desafiadora, a personagem escolhe fazer a viagem de carro, ou seja, atravessar os Estados Unidos dirigindo da Califórnia até Nova York, o que a levaria a passar outras duas semanas na estrada. A coisa toda começa a degringolar quando, em sua primeira parada, em Monróvia, cidadezinha a pouco mais de meia hora de sua casa, ela fica uma noite, duas… e tudo acontece.
Sucesso instantâneo
A conversa com a psicanalista Esther Perel, em setembro de 2023, foi uma das poucas concedidas por July após a publicação. Uma exaustão depois do lançamento a fez cancelar compromissos — a Quatro Cinco Um segue na fila, aguardando uma oportunidade de entrevista. Por isso, a autora afirma ter acompanhado “surpresa” a repercussão, por meio de mensagens do público e relatos de amigas e amigos. “Me senti reconhecida não pela pessoa que sou, mas pelo que captei.”
Entre os recados que July recebeu, mulheres contaram ter dado o livro de presente ao marido. Alguns homens, por sua vez, disseram ter se identificado com Harris e sua mulher. Outros compartilharam questionamentos a respeito de sua própria formação, por meio da clássica “jornada do herói”, eficaz em inspirar coragem, ambição e conquista sob uma perspectiva masculina e patriarcal.
Parte do clamor despertado por De quatro se deve ao fato de que, enquanto o escrevia, July consultou amigas, médicas, conhecidas e fãs para colher depoimentos sobre a peri e a menopausa. Espalhados pelo romance, os testemunhos criam uma identificação imediata: é como se a escritora estivesse lendo os pensamentos das leitoras, incluindo os mais malucos.
Adepta desse tipo de pesquisa em seu processo criativo, quando realizou seu segundo longa-metragem, O futuro (2011), July visitou pessoas que colocavam objetos estranhos à venda em classificados de jornais. O resultado desses encontros está registrado no livro O escolhido foi você (Companhia das Letras, 2013).
Uma das amigas com quem July se aconselhou foi a canadense Sheila Heti, autora de Maternidade (Companhia das Letras, 2019). Narrado em primeira pessoa por uma escritora em dúvida sobre ser mãe ou não, a obra de Heti dialoga com De quatro em questionamentos sobre o tempo de “vida útil” de uma mulher, que o patriarcado convencionou como os anos fertéis desde a primeira menstruação até a perimenopausa. Como escreve Heti em Maternidade:
O livro esquadrinha o despertar sexual e erótico da protagonista e as consequências disso
A vida de uma mulher dura mais ou menos trinta anos. Parece que, durante esses trinta anos — dos catorze aos quarenta e quatro — tudo precisa ser feito. Ela precisa achar um homem, fazer bebês, começar e impulsionar a sua carreira, evitar doenças […]. Trinta anos não é tempo suficiente para fazer tudo.
Em entrevista ao The New York Times, Heti fala sobre como foi acompanhar a escrita de De quatro. “Me lembro de estar dirigindo e conversando com Miranda sobre casamento, sexo”, diz a canadense, que leu o rascunho inicial do romance. “Senti que ela estava tentando mapear o mundo por meio de suas conversas com as pessoas, interessada em desejos ocultos. Aqueles que não conseguimos falar para nós mesmas ou que temos medo de articular.”
Outro tanto do sucesso de De quatro resulta de a publicação espelhar a biografia de sua autora, que se inspirou em experiências pessoais, mas faz questão de afirmar que o livro é uma ficção.
Nascida em 1974 em Barre, no estado de Vermont, July é herdeira da contracultura dos anos 60. Ela e seu irmão mais velho, o também escritor Robin Grossinger, cresceram na mesma casa em que seus pais, Lindy Hough e Richard Grossinger, mantinham uma editora alternativa que publicava livros sobre cura por meio de cristais, alimentação natural e homeopatia.
Nos anos 90, July se mudou para Portland, no Oregon, onde trabalhou como stripper (assim como a personagem de De quatro, que atuou num peep show) e iniciou suas performances artísticas, inserindo-se no movimento feminista punk batizado “riot grrrl”.
Tal qual a protagonista de De quatro, Miranda tornou-se prestigiada na cena artística independente encarnando o espírito “do it yourself” como atriz, dramaturga, performer, videomaker, roteirista, artista plástica, produtora e diretora. Aos trinta anos, ganhou projeção internacional graças ao filme Eu, você e todos nós (2005), escrito, dirigido e interpretado por ela.
Na narrativa vertiginosa e cinematográfica, July vai desconstruindo certezas e preconceitos
No longa premiado nos festivais de Cannes e Sundance, July é uma artista plástica e chofer de idosos que se interessa por um vendedor de sapatos recém-separado e pai de dois meninos. Com seus enormes olhos azuis em contraste com a pele branquíssima e cabelos cacheados, July se tornou sinônimo de personagens que parecem sempre esperar que alguma coisa extraordinária aconteça em meio à rotina do dia a dia.
Em torno dessas figuras, ela desenvolveu uma obra audiovisual, incluindo longas de ficção — O futuro (2011) e Kajillionaire (2020) —, livros de contos — É claro que você sabe do que estou falando (Agir, 2008) — e o romance O primeiro homem mau (Companhia das Letras, 2015). Em paralelo, seguiu experimentando em meios como vídeo, redes sociais e newsletters, além de fazer trabalhos em parceria com grifes de luxo como a italiana Miu Miu. Sua primeira exposição individual foi realizada no ano passado, na Fundação Prada, em Milão.
Não menos cult é seu ex-marido, o diretor Mike Mills — autor de vídeos musicais para Moby, Yoko Ono e Air, além de longas e curtas —, com quem July tem uma criança transexual feminina não binária. Tudo quase igualzinho à heroína de De quatro.
Siriricas homéricas
Dividido em quatro partes, o livro esquadrinha o despertar sexual e erótico da protagonista; as consequências disso em seu casamento e nos relacionamentos; os rearranjos possíveis e as novas e surpreendentes transformações — reforçadas por depoimentos de mulheres na pós-menopausa, que convergem para o quanto o novo ciclo é “libertador”.
Numa alegoria ao ensaio “Um teto todo seu”, de Virginia Woolf, no qual a britânica defende que mulheres precisam de dinheiro e um quarto (ou, ao menos, um teto) para criar, a protagonista de De quatro transforma a suíte de um hotel de beira de estrada num cômodo de luxo, inspirado em uma estadia que passou no hotel Le Bristol, em Paris.
Nesse cômodo, ela viverá noites de siriricas homéricas, depois de uma paixonite por Davey, um rapaz mais jovem, aspirante a dançarino, que trabalha numa loja de aluguel de carros.
Deitei na cama e me masturbei enquanto imaginava nós dois tirando a roupa e ele enfiando o pau na minha buceta, que ficou tão molhada agora que gozei pela primeira vez, e depois ele me fodia por trás, e agora metia no meu cu (Claire nunca deixa), o que me fez gozar de novo, e aí estava chupando seu pau e gozei de novo, e ele lambia minha buceta como se estivesse morrendo de vontade e eu gozei de novo, pela quarta e última vez.
(Em tempo: destaque à tradução da poeta e escritora Bruna Beber, que transpôs com primor gírias e termos de diferentes universos, incluindo os desafios da linguagem neutra em português).
A metáfora do quarto ganha contornos mais profundos na segunda parte, quando a personagem conhece a ex-amante de Davey, Audra, uma mulher idosa e sexy que mantém uma cama imensa no meio da sala. O encontro entre as duas será determinante para a protagonista compreender que o prazer liberta, enquanto as fantasias consomem as mulheres.
Nessa narrativa vertiginosa e cinematográfica, July vai desconstruindo as certezas e preconceitos da personagem, como os altos e baixos do gráfico hormonal que a aterroriza mostrando a queda do estrogênio, hormônio que regula desde o ciclo menstrual às ondas de calor e a secura vaginal.
Por se concentrar num universo que espelha o seu — branco, elitista, californiano, moderno, cool etc. —, falta um tanto de interseccionalidade ao romance. Certamente nem todas as mulheres vão se identificar com as crises da protagonista. Mas até nisso July se sai bem, usando uma ironia cínica no que tange aos “white people problems” de sua versão fictícia, em apontamentos sobre elitismo e etarismo, por exemplo.
Ironia e humor que já começam no título do livro, De quatro. A expressão usada vem de uma fala de Jordi, amiga e confidente da protagonista, a artista plástica responsável por uma escultura feita em mármore de uma mulher sem cabeça, apoiada sobre as mãos e os joelhos. Segundo Jordi, uma posição das mais estáveis. “É difícil cair quando se está de quatro.”
Matéria publicada na edição impressa #89 jan em janeiro de 2025. Com o título “Manifesto da meia-idade”
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